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Isenção fiscal a agrotóxicos no Brasil desrespeita direito constitucional a uma alimentação adequada e causa impactos severos à saúde e ao meio ambiente, alerta nutricionista do Idec
Quatro bilhões e seiscentos milhões de reais: este é o valor que os estados brasileiros deixaram de arrecadar do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) em um ano por serem os agrotóxicos isentos de impostos. O cálculo é do pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Wagner Soares, com base no Censo Agropecuário de 2006, corrigido para os valores de 2018. Desde 1997, por meio de um convênio do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), que reúne as secretarias estaduais de Fazenda, as unidades da federação reduziram em 60% a base de cálculo do ICMS incidente sobre os agrotóxicos. Assim, em praticamente todo o Brasil, esses produtos são isentos desse tributo.
E a renúncia fiscal concedida aos agrotóxicos não se limita ao ICMS. Um decreto de 2005 reduziu a zero as alíquotas de contribuição do PIS/Pasep e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) incidentes sobre a importação e comercialização de agrotóxicos. Segundo Soares, o Brasil deixou de arrecadar R$ 2,3 bilhões em um ano. Quer mais? Os agrotóxicos ainda são beneficiados por uma legislação bastante permissiva com relação à cobrança de IPI, o Imposto sobre Produtos Industrializados. Só aí, mais R$ 1,2 bilhão deixou de ir para os cofres públicos.
Por essas e outras é que a recente decisão do governo de Santa Catarina de acabar com a isenção de ICMS para agrotóxicos no estado foi bem recebida por entidades que lutam pela redução do uso desses insumos no Brasil, que hoje é o maior consumidor per capita. Entre elas está o Idec que, em agosto, enviou uma carta ao governador Carlos Moisés (PSL) apoiando a iniciativa de instituir uma alíquota de ICMS de 17% sobre os agrotóxicos.
A cobrança, prevista em um decreto assinado no final de 2018, na gestão de Eduardo Pinho Moreira (MDB), passaria a vigorar em agosto. No entanto, após reunião com representantes do agronegócio, o governador apresentou uma medida provisória adiando o início da cobrança para 1o de janeiro de 2020. E ainda instituiu um escalonamento das alíquotas de acordo com o grau de toxicidade do produto, acompanhando os critérios estabelecidos, em julho, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Dessa forma, aqueles classificados como altamente tóxicos pagarão 17%; os moderadamente tóxicos, 12%; e os pouco tóxicos, 7%. Já para os produtos improváveis de causar dano agudo, a alíquota é de 4,8%, e os produtos biológicos e bioinsumos continuam isentos. O governo de Santa Catarina segue defendendo a transição para tributação de defensivos agrícolas por grau de toxicidade. "O objetivo é promover o uso consciente dos produtos na agricultura em função do seu potencial tóxico para o meio ambiente e a saúde pública", destacou por meio de nota.
Para Rafael Arantes, nutricionista do Programa Alimentação Saudável do Idec, a mudança fragiliza o potencial da iniciativa, já que a norma anterior estabelecia o imposto de 17% para todos os agrotóxicos. "Além do adiamento, que já foi muito ruim, há também a redução drástica dos produtos que serão taxados em 17%", critica ele.
Já o prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro, fez algo que merece ser comemorado: ele sancionou uma lei que proíbe qualquer tipo de produção agrícola, pecuária ou extrativista que utilize agrotóxico na cidade. Para entrar em vigor, ela precisa ser regulamentada, o que deve ocorrer em 180 dias.
CUSTOS SOCIAIS DOS AGROTÓXICOS
Não é de hoje que o Idec é contra os incentivos fiscais concedidos aos agrotóxicos no Brasil. Desde 2017, o Instituto atua como amicus curiae (amigo da Corte) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 5.553. Apresentada pelo PSOL ao Supremo Tribunal Federal (STF), a ADI questiona a constitucionalidade do convênio no 100/1997 do Confaz, que reduz a base de cálculo do ICMS para agrotóxicos, e o Decreto no 7.660/2011, que concede isenção total do IPI a esses produtos. "Essa política é totalmente incoerente com o direito do cidadão à alimentação adequada, garantido pela Constituição Federal. É um estímulo a produtos que, além de não serem essenciais, trazem impactos severos à saúde e ao meio ambiente", opina Arantes.
Calcular o prejuízo econômico dos danos ambientais e à saúde causados pelos agrotóxicos tem sido o foco do trabalho de Soares. Ele e Marcelo Firpo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), estimaram os custos associados às intoxicações agudas no Paraná. A conclusão? Para cada dólar gasto com agrotóxicos no estado, o ônus aos cofres públicos vai de US$ 0,30 a US$ 1,28, para tratamento dessas intoxicações. "O incentivo fiscal é um estímulo econômico a atividades que geram benefícios sociais. Só que os agrotóxicos causam enormes custos sociais, que precisam ser levados em conta na hora de avaliar o retorno dessa política. Contudo, esses custos não são considerados", informa Soares.
O pesquisador do IBGE destaca ainda que os incentivos fiscais acabam tornando os agrotóxicos a principal forma de controle de pragas, já que são financeiramente vantajosos. "Para o Pronaf, que é um programa de incentivo à agricultura familiar, o uso de agrotóxicos é quase condição para os produtores receberem crédito dos bancos para custeio da produção. Isso atrapalha muito a transição para uma agricultura menos dependente de agrotóxicos", ele afirma.
ALTERNATIVAS
"É para estimular o consumo de produtos mais sustentáveis e saudáveis e incentivar a construção de políticas públicas socialmente mais responsáveis que o Idec tem pautado as ações do programa Alimentação Saudável", explica Arantes. Um exemplo é o Mapa das Feiras Orgânicas, criado em 2014 e atualizado frequentemente. "Já são mais de 850 iniciativas identificadas em todo o Brasil. A ferramenta permite encontrar alimentos orgânicos e agroecológicos por preço acessível diretamente dos produtores", conta o nutricionista.
Outra iniciativa é o Guia de Alimentos Orgânicos nas Escolas, que relata experiências exitosas de estados e municípios que priorizam a compra de alimentos orgânicos e agroecológicos para a alimentação escolar. "O Idec entende que essas ações precisam ser incentivadas financeiramente com políticas fiscais. Atualmente, se dá o inverso: a 'premiação' para o uso do agrotóxico", declara Arantes.
LIBERAÇÃO DESENFREADA
O Ministério da Agricultura anunciou, em 3 de outubro, o registro de mais 57 agrotóxicos, fazendo subir para 382 a quantidade de venenos liberada este ano. É o maior número de liberações registrado no período de janeiro a outubro desde 2005. "Estamos enfraquecendo o controle do uso de agrotóxicos e facilitando a entrada de mais empresas no mercado. Isso significa ainda mais danos ao trabalhador e ao meio ambiente", lamenta Meirelles, da Fiocruz.
Além disso, o novo marco regulatório para classificação do risco toxicológico oferecido pelos agrotóxicos, divulgado pela Anvisa em julho, também preocupa. "Antes, se um produto causasse irritação na pele e nos olhos, ele era considerado extremamente tóxico, e a Organização Mundial da Saúde [OMS] recomendava seu banimento", informa Meirelles, que trabalhou na área de toxicologia da Anvisa até 2012 e testemunhou a pressão exercida pelo mercado para a exclusão de alguns critérios para classificação dos produtos. Segundo ele, as mudanças aprovadas este ano materializaram essas demandas. "Como as irritações na pele e nos olhos faziam com que muitos produtos fossem considerados extremamente tóxicos, eles eliminaram esse critério. E de uma hora para outra os produtos extremamente e altamente tóxicos caíram de 702 para 43. Mas eles continuam sendo muito tóxicos", adverte.
Um exemplo é o glifosato, produto mais utilizado no país e que corre o risco de ser proibido pela União Europeia. Ele era classificado como "medianamente tóxico"; agora, ele é um "produto improvável de causar dano agudo", uma das categorias mais brandas. Já produtos à base de 2,4-D passaram de "extremamente tóxicos" para "pouco tóxicos". O 2,4-D é o segundo princípio ativo mais utilizado no país, e segundo o Ministério da Saúde é um dos maiores responsáveis por intoxicação aguda de trabalhadores rurais.
O Idec é contra a mudança nos critérios para classificação toxicológica dos agrotóxicos. "A toxicidade dos produtos não mudou. O que mudou foi a forma usada para comunicar os riscos, que passou a ser mais permissiva. O novo marco regulatório pode acentuar o cenário de intoxicações agudas e mortes causadas por agrotóxicos", finaliza Arantes.