Atenção com a licitação
A forma como as prefeituras escolhem as empresas privadas que irão operar o sistema de transportes reflete na qualidade e no preço do serviço prestado
No ponto não há nada dizendo quais ônibus param ali. Resta torcer para que algum outro passageiro apareça e saiba dar a informação. Depois de esperar mais de 20 minutos, o ônibus chega: lotado, quente e em mal estado. Não bastasse isso, o motorista dirige perigosamente. O pior é pagar caro por esse serviço, que é um direito do cidadão brasileiro.
No mundo ideal, os ônibus seriam pontuais; os pontos de ônibus, confortáveis, com informação aos usuários; os motoristas e cobradores, mais preparados; e os veículos, novos (silenciosos, limpos, com ar condicionado, GPS etc.). Infelizmente, essa não é a realidade enfrentada por quem usa o transporte público nas grandes cidades brasileiras. A situação, apesar de absurda, tornou-se habitual. Por falta de alternativa, as pessoas aprenderam a lidar com ela. Mas quando e como esse cenário vai mudar?
Há muitas respostas para essa pergunta, contudo, existe uma especial: quando as características da licitação – “ferramenta” usada pelos governos para escolher as empresas privadas que irão operar o sistema de transportes – mudar. Trata-se de um processo de concorrência que, no final das contas, determina quanto a tarifa de ônibus vai custar e qual será a qualidade do transporte. O objetivo da licitação é oferecer à população o melhor serviço pelo menor custo. Para isso, é importante atrair muitas empresas para a disputa. Quanto maior a concorrência, mais os participantes se “esforçam” para apresentar preços competitivos, além de mais qualidade. Com isso, o custo como um todo cai, a tarifa que o passageiro paga fica mais barata e a qualidade do atendimento aumenta.
Obstáculos à concorrência em São Paulo
- Posse de garagem: as empresas que atuam hoje no sistema já possuem garagem na cidade enquanto as companhias interessadas teriam de comprar um terreno, o que custaria muito caro, ou desapropriar algum.
- Tempo de concessão longo: o edital propôs um prazo longo, de 20 anos. O tempo não é justificável em termos financeiros, consolida o predomínio das mesmas empresas na operação do sistema e prolonga a utilização de técnicas e tecnologias ultrapassadas.
- Proibição de empresas estrangeiras: a Lei no 13.241/2001 impede, sem justificativa, a participação de empresas de outros países na licitação. Atrair concorrentes estrangeiros é interessante, pois além de ampliar a competitividade, traz ao país tecnologias e conhecimentos novos.
SÃO PAULO, UM MAU EXEMPLO
Durante o mês de março, a prefeitura de São Paulo recebeu propostas das empresas interessadas em operar o sistema municipal de ônibus pelos próximos 20 anos. O processo de escolha se deu por meio de licitação. Ao todo, 32 contratos estavam em disputa para atuar em diferentes regiões da cidade, sendo que em 31 deles apenas uma empresa competiu. A falta de concorrência já era prevista há meses, em razão das dificuldades colocadas pelo edital da licitação (documento que define as regras do sistema de ônibus). Dessa forma, as companhias sentiram-se confortáveis para se inscrever pedindo a remuneração máxima permitida. A prefeitura e os vereadores da cidade tiveram a chance de evitar isso, mas não se empenharam para defender o interesse dos cidadãos.
Como já vinha sendo alertado pelo Idec e por outras entidades desde o início de 2018, as condições previstas no edital inviabilizavam a participação de novas empresas e beneficiavam as que já operam na cidade há décadas. Segundo Rafael Calabria, especialista em mobilidade do Idec, o principal problema foi a exigência de que os concorrentes tivessem garagens, ou seja, grandes terrenos para estacionar os veículos. “Só as empresas que já atuam no sistema possuem essas áreas. As outras precisariam adquiri-las. Além de caro, esses espaços são escassos no município”, ele ressalta. Uma solução seria a prefeitura comprar os terrenos que já são utilizados como garagem e alugar a quem ganhar o contrato. “Nesse caso, a empresa ficaria responsável apenas pela operação dos ônibus”, afirma Calabria.
Infelizmente, no Brasil não existem outros municípios com práticas melhores de licitação, com mais competitividade. Em todos onde a operação do sistema de transporte ocorre por concessão a companhias privadas prevalecem os interesses de poucos grupos empresariais.
Segundo Lúcio Gregori, engenheiro e ex-Secretário Municipal de Transportes de São Paulo (gestão Luiza Erundina, 1989-1993), os processos de concorrência são uma farsa. “Empresas se associam a grupos locais, bem menores, e influenciam as licitações”, diz.
Gregori lembra ainda que o serviço de transporte coletivo é de interesse público, por isso não deve ser visto como fonte de lucro, e o setor privado deve entrar apenas como prestador do serviço. Da forma como ocorre no Brasil, os empresários são muito favorecidos, não correm qualquer risco, e a população é prejudicada. “Se o problema das prefeituras é não ter dinheiro para investir em ônibus, existem alternativas, como fretamento e leasing (tipo de aluguel) de veículos, comuns em Londres”.
Calabria esperava que São Paulo, por ter o maior sistema de transportes do Brasil, tivesse dado um bom exemplo com seu processo de licitação. “Infelizmente isso não ocorreu. Agora, junto com parceiros, tentaremos influir na licitação de Brasília, que pode ocorrer daqui a um ano”, ele declara.
BONS EXEMPLOS ESTRANGEIROS
Fora do país, é possível encontrar cidades que conseguiram elevar a qualidade do serviço de transporte público prestado ao usuário por meio de boas práticas na licitação. Em fevereiro de 2018, o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), realizou um estudo para apresentar à SPTrans (empresa que gere o sistema de ônibus em São Paulo) algumas iniciativas bem-sucedidas ao redor do mundo que pudessem ajudar a aperfeiçoar a licitação da capital paulista. Veja, a seguir, alguns exemplos:
- Em Bogotá, na Colômbia, a qualificação dos motoristas é considerada essencial para garantir cordialidade no tratamento dado aos usuários e condução segura do veículo. O edital do sistema de BRT TransMilênio determina que é obrigatório que os motoristas passem por treinamento frequente, além de exames físico e psicológico.
- Buenos Aires, capital argentina, estabeleceu no edital metas para ampliar a paridade de gênero na composição das empresas. A iniciativa surgiu diante de dados que provam que motoristas mulheres aumentam a sensação de segurança para passageiras (grupo mais vulnerável a assédios sexuais no transporte público). Além disso, elas são responsáveis, proporcionalmente, por menos infrações, mortes e atropelamentos no trânsito.
- Em Londres, na Inglaterra, o edital de concessão aumenta ou reduz a remuneração do empresário de acordo com a pontualidade dos ônibus, que é calculada não apenas com base no horário de partida, mas também pela passagem dos veículos por pontos de controle. Além disso, os empresários não são donos da garagem e, em alguns casos, nem da frota de ônibus.
- Na Cidade do México, capital mexicana, a concessão da Linha 1 do sistema de BRT Metrobús apresenta em seu edital a existência de um Fundo de Sanções e Bonificações, para onde são direcionados todos os recursos adquiridos com multas. O fundo pode ser parcialmente acessado pelo operador que cometeu o menor número de infrações no final de cada semestre, desde que respeitado um limite mínimo de desempenho. Iniciativa semelhante é a do sistema de BRT Janmarg, em Ahmedabad, na Índia, onde há possibilidade de bonificação caso o operador apresente um desempenho anual acima de 96% dos índices de performance obrigatórios e as multas recebidas estejam abaixo de 3% de seu faturamento no mesmo ano.
CONTRATO LONGO DEMAIS
Em Londres, o prazo do contrato de concessão é de cinco anos; na Índia, de sete; e no México, de dez.
A concessão dos ônibus de São Paulo, que se inicia agora, terá duração de 20 anos. Ao longo desse período, a população pagará caro por um serviço que não deve melhorar. “Infelizmente, os pontos positivos do edital estão em risco por conta do forte domínio econômico exercido por algumas empresas do setor, além da falta de controle da prefeitura”, preocupa-se Calabria.