Parece mas não é
Leis que protegem o direito à amamentação no Brasil continuam sendo desrespeitadas, embora estejam há anos em vigor. Compostos lácteos são os produtos mais problemáticos, pois podem ser facilmente confundidos com leite em pó
Mães e pais precisam ficar alertas quando forem comprar leite em pó ou fórmula infantil para seus bebês. Não é de hoje que a Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan, na sigla em inglês) no Brasil e o Idec chamam a atenção para a confusão que um produto ultraprocessado chamado de composto lácteo causa nos consumidores. De acordo com o nutricionista Cristiano Boccolini, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o composto lácteo é uma invenção da indústria alimentícia, que aproveita subprodutos do processamento do leite de vaca e acrescenta outras substâncias e ingredientes de baixo custo, como gorduras vegetais e açúcares, além de vitaminas e substâncias químicas. “Costumo dizer que é um ‘Frankenstein’, porque metade do produto é quase leite de vaca e pouco menos da metade é qualquer outra coisa menos leite”, ele declara.
Todos os anos, a Ibfan monitora o cumprimento da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de 1a Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras (NBCAL), que defende o direito à amamentação no Brasil a fim de garantir que todas as crianças recebam apenas leite materno nos seis primeiros meses de vida e, depois desse período, uma alimentação saudável e adequada junto com o leite materno até pelo menos os 2 anos. O objetivo do monitoramento é verificar se essa norma e a Lei no 11.265/2006 – que sancionou a NBCAL – estão sendo respeitadas por fabricantes e também pelos postos de venda.
Assim como em 2017, muitos problemas na comercialização dos compostos lácteos foram identificados em 2018. Das 228 infrações, 84 são referentes a esse produto. “A Ibfan está extremamente preocupada com a magnitude das promoções comerciais dos compostos lácteos, que violam a legislação e podem levar o consumidor a erro”, declara Marina Ferreira Rea, membro da Ibfan e responsável pelo levantamento. “Os consumidores têm fácil acesso a folhetos promocionais e propagandas vinculadas pela internet. Informações incorretas podem aumentar as dúvidas e dificultar ainda mais o processo de aleitamento materno e a alimentação complementar adequada”, complementa Claudia Gondim da Silva, coordenadora do monitoramento.
COMPOSTO LÁCTEO NÃO É LEITE
Embora tenham embalagens muito semelhantes e um marketing sedutor, é importante que o consumidor saiba que composto lácteo não é leite. Segundo a Instrução Normativa nº 28/2007 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), “composto lácteo é o produto em pó resultante da mistura do leite com produto(s) ou substância(s) alimentícias(s) lácteas(s) ou não lácteas(s), ou ambas, mediante processo tecnologicamente adequado”. Os ingredientes lácteos devem representar no mínimo 51% do total de ingredientes do produto. Ou seja, 49% não é leite. “As embalagens dos compostos são quase idênticas aos das fórmulas infantis, o que pode conduzir o consumidor ao erro de oferecer esse produto a crianças menores de 1 ano, colocando em risco a saúde delas”, adverte Boccolini.
Como a legislação não determina parâmetros mínimos e máximos para a composição nutricional dos compostos lácteos, o que se vê no mercado são produtos com quantidades de macro e micronutrientes variadas, a depender da marca e do preço. “A quantidade de carboidrato pode variar de 11 g a 19 g; a de proteína, de 2,4 g a 5,8 g; a de gordura total, de 1,9 g a 7,9 g; e a de sódio, de 49,5 mg a 169 mg por porção”, informa Jeanine Maria Salve, nutricionista e membro da Ibfan. Para o Mapa, o leite em pó integral deve conter 26 g ou mais de gordura. Assim, fica claro que composto lácteo não é sinônimo de leite em pó.
QUAL É O PROBLEMA?
Não é um, são vários. O primeiro é que o composto lácteo não é indicado para crianças com menos de 3 anos, principalmente por conter maltodextrina, um tipo de açúcar com índice glicêmico elevado, além de outros aditivos químicos que melhoram o sabor, mas são calóricos. “O fabricante recomenda que a criança consuma o composto lácteo de duas a três vezes ao dia. Porém, numa única refeição, se um bebê entre 7 e 12 meses ingerir apenas esse produto, o consumo energético será de mais da metade do indicado. Portanto, pode levar à obesidade”, alerta Salve. Além disso, o composto lácteo contém sulfato ferroso, que é pouco absorvido pelo organismo quando consumido junto com fontes de cálcio. Para o nutricionista da Fiocruz, devido as suas características, os compostos lácteos não são recomendados para crianças com menos de 1 ano de idade, e, mesmo para crianças maiores, é um produto alimentar dispensável. “O leite de vaca tem muito mais qualidade nutricional, por isso, em vez do produto ultraprocessado, as crianças com mais de 1 ano deveriam tomar leite batido com uma fruta sem açúcar”, ele recomenda.
Outro problema é o fato de esse produto não ser registrado na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “Como ele não é regulamentado, os fabricantes aproveitam para fazer propaganda não ética usando frases de efeito”, afirma a nutricionista da Ibfan. Para ela, todo alimento indicado para crianças com até 3 anos deve respeitar a NBCAL.
Em 2017, a Ibfan e o Idec apresentaram os resultados relacionados à indústria alimentícia à Anvisa e pediram um posicionamento em relação aos compostos lácteos, mas até hoje a agência reguladora não se manifestou. Este ano, pela primeira vez, os estabelecimentos (supermercados, farmácias etc.) serão denunciados às vigilâncias sanitárias municipais. “Percebemos que não adianta enviar para a Anvisa, porque ela encaminha para as vigilâncias dos municípios, e esse processo demora muito”, conta Silva.
A Anvisa e as vigilâncias sanitárias municipais são as responsáveis por fiscalizar o cumprimento da NBCAL e da Lei no 11.265/2006. Contudo, a única cidade em que o monitoramento é feito adequadamente por esses órgãos é Palmas (TO) – há alguns anos –, além do Distrito Federal, mais recentemente.
Como foi feita a pesquisa
Fizemos o monitoramento de junho a outubro de 2018 em 28 municípios de 11 estados brasileiros. Coletamos os dados por meio de formulários de acordo com o tipo de produto e a estratégia de marketing.
Foi verificada a promoção comercial de produtos abrangidos pela NBCAL e pela Lei no 11.265/2006 em supermercados, farmácias, lojas de departamento, lojas de artigos infantis etc.; em folhetos promocionais; em páginas eletrônicas de fabricantes, distribuidores, importadores e comerciantes; em meios de comunicação como rádio, TV, outdoors, sites e mídias sociais. Também analisamos materiais educativos impressos ou eletrônicos sobre alimentação infantil, bicos, chupetas e mamadeiras, e o rótulo de alimentos indicados para lactentes e crianças com até 3 anos de idade, além de bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamilo.
Após a revisão dos formulários, enviamos, com a ajuda do Idec, notificações às empresas apresentando as irregularidades, com o prazo de sete dias corridos para resposta. Veja o que elas responderam no portal do Idec.
Marina Ferreira Rea, membro Ibfan e responsável pelo monitoramento de 2018
OUTROS RESULTADOS
No monitoramento, a Ibfan avaliou pontos de venda dos produtos mencionados na NBCAL, além de folhetos promocionais; sites, mídias sociais e outdoors; rotulagem de alimentos; e materiais educativos ou informativos.
Nos postos de venda, foram computadas 168 infrações: compostos lácteos promovidos sem a frase de advertência exigida por lei e promoções comerciais de fórmulas infantis, que são proibidas. Apenas 16 estabelecimentos responderam à notificação enviada pela Ibfan e pelo Idec, sendo que sete concordaram com o que foi apontado e nove discordaram.
Em 11 folhetos promocionais de estabelecimentos comerciais foram encontradas 20 infrações referentes à promoção de leite e composto lácteo sem frase de advertência. Apenas duas empresas responderam.
Treze empresas foram notificadas por desrespeitarem, em seu site, as regras vigentes: promoveram fórmulas infantis e fizeram propaganda de leite em outdoor sem frase de advertência. Apenas duas responderam.
No caso dos rótulos, duas marcas infringiram as leis: uma estampou a imagem de uma criança na embalagem de seu leite fluido; e a outra comparou leite de cabra ao leite materno.
E, por fim, uma empresa foi notificada por apresentar em seu site institucional material educativo sobre alimentação de lactente, em desacordo com a Lei. Ela não enviou resposta.
O Idec repudia o descumprimento recorrente da lei por parte dos fabricantes e comerciantes de alimentos para lactentes, bicos, chupetas, mamadeiras e protetores de mamilos. “A utilização de estratégias ilegais de marketing fere o direito do consumidor à informação adequada e clara e a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva. É ainda mais grave quando se trata de produtos que atrapalham a amamentação e a introdução adequada de alimentação complementar, representando risco à saúde das crianças”, enfatiza Laís Amaral, nutricionista do Idec.