Tá tudo dominado
Levantamento do Idec expõe que poucas empresas controlam o mercado de planos de saúde, com consequências negativas para os consumidores
Operadoras de planos de saúde comprando outras operadoras, hospitais, clínicas, laboratórios. Os efeitos da concentração do mercado estão evidentes. Levantamento feito pelo Idec mostra que o número de empresas nessa área caiu de 920 para 757 entre 2013 e 2018. No começo desse século eram 1.289. O número pode ainda parecer grande, mas, de bate-pronto, quantos planos de saúde você consegue listar? Atualmente, seis empresas detêm 31% do mercado, sendo que as dez primeiras controlam 37% dos 47 milhões de usuários. E apenas 23 corporações respondem por 50% do mercado.
Ana Carolina Navarrete, advogada e pesquisadora em Saúde do Idec, adverte que a concentração tende a ganhar cada vez mais força. “Agora, o que acontece é a financeirização. Esse modelo fez empresas serem engolidas. Não é mais um fundo garantido pelos próprios usuários para ser usado quando algum deles precisar de atendimento. Esse dinheiro é reinvestido no mercado financeiro”. Ou seja, o lucro das empresas pode aumentar, mesmo que o número de beneficiários caia, como tem acontecido devido à crise econômica. Esse atrelamento ao mercado financeiro aumenta o poder das líderes de mercado de comprar concorrentes e prestadoras de serviço (processo este chamado de verticalização).
A tendência de adquirir prestadoras de serviço se acentuou nos últimos anos, desde que a participação de capital estrangeiro em hospitais foi liberada. A Amil, líder de mercado com 3,4 milhões de clientes, comprou, em 2015, o Hospital Samaritano, em São Paulo (SP), até então uma instituição sem fins lucrativos. Desde que a United Health assumiu o controle da operadora, em 2012, foram dezenas de aquisições. Agora, a empresa comanda vários hospitais próprios, que antes prestavam serviço a diversos planos de saúde. “Isso mexe nos preços, porque as operadoras podem impor aos usuários tanto a remuneração dos procedimentos como a mensalidade”, alerta Navarrete.
Em outra face da mesma moeda, fundos de investimento têm forte participação na Rede D’Or, que adotou uma estratégia agressiva de aquisições para se tornar o maior grupo hospitalar do País, com mais de 6 mil leitos e meta de chegar, em breve, a 9 mil. No ano passado, o lucro foi de quase R$ 1 bilhão.
OPERADORAS AMBICIOSAS
Os efeitos da concentração são conhecidos: aumentos abusivos, redução repentina da rede credenciada, exclusão de coberturas, rompimento unilateral de contrato, impossibilidade de contratar planos individuais. Concorrentes menores têm cada vez menos chances de sobreviver, pois fica difícil contar com uma rede de clínicas e hospitais. E isso afeta os consumidores, que já sentem o número limitado de operadoras.
Carlos Ocké-Reis, integrante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e ex-assessor econômico da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), foi um dos primeiros a descrever o atual fenômeno de concentração. Em 2007, ele observou que era preciso olhar para os mercados relevantes, ou seja, para as empresas com mais clientes. Ele recorda que o processo de concentração envolve também administradoras de benefícios, que passaram a comprar prestadoras de serviços. De lá pra cá, tornou-se comum hospitais assumirem a gestão de unidades básicas de saúde. “Uma grande operadora de plano de saúde que tem metade da rede inviabiliza que outras operadoras contratem essa rede. Esse mecanismo é claramente um indicador de poder de mercado, porque permite estabelecer uma prática anticoncorrencial”, ele afirma.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, apenas dez empresas controlam metade do mercado. No território nacional, são 23. Ao olhar para outros estados encontram-se números ainda mais contundentes, em particular no Nordeste, onde há forte atuação da Hapvida. Na Bahia, a empresa controla 24% da carteira de clientes. Em Pernambuco, 35%. No Ceará, onde foi criada, 42%. Terceira do Brasil em número de clientes, ela decidiu, este ano, oferecer ações na bolsa de valores. A operação foi marcada por uma procura sete vezes maior do que a oferta e uma arrecadação total de R$ 3,4 bilhões. Em abril, a Hapvida informou ao jornal O Estado de S. Paulo que os recursos seriam usados para adquirir mais prestadores – até então, eram 116 hospitais e clínicas.
A NotreDame Intermédica, quarta maior do País, fez movimento paralelo após receber aportes de um fundo de investimento que a permitiu quadruplicar de tamanho em quatro anos. A venda de ações realizada no primeiro semestre de 2018 amealhou R$ 2,7 bilhões a serem reinjetados em um ambicioso plano de expansão. Logo em seguida, foi anunciada a compra da paulistana Greenline, até então com 450 mil usuários.
Em Minas Gerais, é a Unimed que tem 23% dos 5 milhões de usuários. Quando se considera todas as Unimeds como uma empresa só, a concentração é mais alarmante. De acordo com o levantamento do Idec, são 6,8 milhões de clientes, o dobro da Amil.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
A ideia central do levantamento era verificar se o mercado de planos de saúde brasileiro está concentrado e quais são as operadoras que detêm o maior número de consumidores em suas carteiras. Para isso, foram utilizados os dados da Sala de Situação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e as publicações dos Cadernos de Saú- de Suplementar, disponíveis no site da agência reguladora.
Ana Carolina Navarrete,
advogada e pesquisadora em Saúde do Idec
CONCENTRAÇÃO PREJUDICIAL
No começo de dezembro, para justificar mais um reajuste, as empresas divulgaram que os custos cresceram 41,4% no ano – no período, o índice de inflação oficial do Brasil era de 4,04%. É aí que entra outro efeito da financeirização. É comum que os clientes assinem um contrato que parece barato, mas após poucos meses são surpreendidos com um reajuste que inviabiliza a permanência no plano. E o problema nessa hora é que a concentração de mercado faz com que seja cada vez mais difícil encontrar para onde correr. Para Ocké-Reis, essa é uma demonstração de que, com ações cotadas na bolsa, as empresas até podem se dar ao luxo de perder clientes. O levantamento feito pelo Idec constatou que, de 2014 a 2018, quase 3 milhões de pessoas deixaram de ter plano de saúde no Brasil.
A Lei no 12.529/2011 estabelece os parâmetros para práticas anticoncorrenciais. Essa situação está configurada sempre que uma empresa controla mais de 20% do mercado relevante ou quando um grupo de empresas for capaz de alterar unilateralmente as condições de mercado. Na edição 218 da Revista do Idec, falamos sobre a influência das operadoras na nomeação de diretores da ANS e na discussão de projetos de lei no Legislativo na matéria “Planos frustrados”. “Quanto mais poder econômico, mais as líderes de mercado conseguem impor o preço”, declara a pesquisadora do Idec. “Além de influenciar pessoas na agência, o poder faz os planos individuais sumirem, a ponto de não haver regulação se continuar desse jeito”, completa.
Hoje, a ANS regula apenas o preço dos planos individuais, que estão pouco a pouco desaparecendo. A concentração de mercado dá poder a poucas empresas, que conseguem escolher o que desejam oferecer e a que preço. Uma das consequências é a oferta quase exclusiva de planos coletivos. Na virada do século, a quantidade de planos individuais e coletivos era quase igual. Hoje, os coletivos são 80%, ou seja, a agência reguladora não tem poder de preservar os direitos da maior parte dos consumidores. E sem regulação, a concentração tende a aumentar ainda mais.
Um estudo sobre concentração realizado em 2015 por Ana Carolina Maia, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), e Mônica Viegas Andrade e Mirian Martins Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a pedido da ANS, verificou que “a concentração observada no mercado de planos individuais é resultado tanto de um encolhimento do setor, uma vez que as operadoras ativas estão desestimuladas a ofertar planos dessa modalidade, como também pode refletir a estratégia das operadoras de atuar mais no mercado de planos coletivos”. As pesquisadoras ressaltam que o cenário é especialmente preocupante quando pensamos nos mais idosos, que podem acabar forçados a arcar com “gastos catastróficos” caso nada seja feito. “Esse grupo, por estar fora da população economicamente ativa, tem menos acesso aos planos coletivos. Além disso, apresenta estado de saúde mais vulnerável, necessitando mais dos serviços de saúde”, assinala o documento.
Para Navarrete, tudo isso evidencia a necessidade de a ANS mudar a maneira como olha para a concentração de mercado. Depois de enxergar o problema, a agência pode adotar medidas que diminuam a disparidade de forças entre operadoras e consumidores. Evitar a rescisão unilateral de contratos e facilitar ainda mais a portabilidade são algumas opções. Além disso, Ocké-Reis aponta a necessidade de a sociedade colocar em evidência os aumentos abusivos como reflexo de um mercado oligopolizado: a falta de opção faz com que as empresas tenham o poder para impor as condições do jogo. Sem mudar as regras, a derrota será cada vez maior.