O dia da Marmota
Todo início de ano é a mesma coisa: prefeituras e governos anunciam aumento das tarifas de ônibus e trens. Contudo, existem formas de oferecer transporte de qualidade sem onerar o consumidor
O filme Feitiço do tempo, de 1993, conta a história de um meteorologista arrogante escalado para cobrir o tradicional Dia da Marmota, celebrado em 2 de fevereiro nos Estados Unidos e no Canadá. Só que a reportagem fica em segundo plano quando ele fica “preso no tempo”, vivendo o mesmo dia várias e várias vezes. Os cidadãos brasileiros têm motivos para se sentirem como o personagem Phil Connors, pois todo início de ano veem uma situação se repetir: o reajuste das tarifas de ônibus e trens. Prefeituras e governos tratam o aumento como algo inevitável, justificando que ele é imprescindível para a responsabilidade fiscal, pois cobre a inflação. Balela!
É fato que o transporte público é caro. Contudo, há formas de pagar essa conta sem onerar o consumidor e ainda melhorar a qualidade do serviço prestado, de forma que o direito de todos à mobilidade seja garantido. “É papel dos prefeitos e governadores escolher como pagar as contas. E no caso do transporte público há uma lei para ajudá-los a tomar decisões – a Política Nacional de Mobilidade Urbana –, aprovada em 2012”, declara Rafael Calabria, pesquisador em Mobilidade Urbana do Idec. O jornalista e pesquisador da área de transporte público Daniel Satini lembra da importância de se considerar os impactos sociais do uso de transportes individuais, como motocicletas, carros particulares e de aplicativos, no orçamento público, já que a poluição e os acidentes de trânsito sobrecarregam o sistema de saúde.
ALTERNATIVAS AO REAJUSTE
O Idec defende que o poder público levante recursos utilizando formas alternativas ao reajuste das tarifas. A mais simples é “alugar” espaços para propaganda dentro dos ônibus/trens e espaços para lojistas e prestadores de serviço em terminais e estações ferroviárias. Essa ideia é especialmente importante para cidades que estão discutindo suas licitações para o serviço de ônibus, como São Paulo (SP), Belém (PA) e Porto Velho (RO).
Outras opções seriam criar uma taxa a ser cobrada sobre o litro da gasolina, instituir políticas de estacionamento (por exemplo, melhorar as zonas azuis e cobrar valores mais altos em locais onde se deseja desestimular o uso do carro), usar a receita advinda do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) ou cobrar uma taxa de imóveis situados perto de áreas beneficiadas por infraestruturas de transporte. “Quando se constrói um metrô ao lado de um prédio, o imóvel se valoriza sem que o proprietário tenha investido. Alguns países, como o Japão, cobram uma taxa sobre essa valorização e investem em melhorias no transporte público”, exemplifica o pesquisador do Idec. Estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE-FGV), de 2012, mostrou que o acréscimo de R$ 0,50 no valor da gasolina reduziria a tarifa do transporte público para R$ 1,20, beneficiando 78% da população. Ou seja, causaria impacto positivo na mobilidade das cidades e promoveria justiça social ao favorecer a população de baixa renda.
Também é possível criar fundos de tributos para grandes empresas que demandam muito dos meios de transporte públicos. Essa solução é adotada em muitas cidades europeias. Contudo, no Brasil, seria necessário alterar a lei federal que instituiu o vale transporte, já que a ideia é juntar todo o dinheiro gasto pelas empresas com vale transporte para seus funcionários em um fundo, a fim de custear o transporte público da cidade, reduzindo o valor da passagem para todos os brasileiros. “Em Paris, esse tipo de fundo cobre 1/3 do custo do transporte municipal”, conta Calabria.
Por fim, soluções específicas podem ser pensadas para cidades que tenham alguma renda “extra”, como é o caso de Maricá (RJ). Lá, foi criada uma empresa pública de ônibus que transporta passageiros gratuitamente. Parte dos custos é paga com os royalties da exploração de petróleo realizada no município. Transporte gratuito já é realidade em vários países, segundo Satini. “Tallinn, capital da Estônia, é a principal referência, mas outras estão estudando implementar o passe livre, como Bruxelas [Bélgica] e Paris [França], além de cidades alemãs, polonesas e escandinavas”, ele cita.
Todas as medidas defendidas pelo Idec costumam ser refutadas pela sociedade por falta de informações sobre a legislação vigente e alternativas já aplicadas com sucesso. “As pressões midiática, cultural e econômica a favor do uso do carro também incentivam a omissão das administrações públicas e torna os aumentos tarifários recorrentes”, opina Calabria, que defende que as alternativas para deixar as tarifas mais baratas sejam discutidas com a população, e seus benefícios, explicados claramente. Satini concorda: “Dados técnicos precisam ser apresentados de maneira clara, transparente e honesta à sociedade em consultas públicas. Bolonha, na Itália, é um bom exemplo de como fazer mudanças com participação popular. No final da década de 1960, foram criadas zonas livres de carros na área central e linhas de ônibus sem cobrança de tarifa, o que mudou totalmente a cidade. Quando a população tem espaço, conhece e se envolve, ela passa a apoiar e defender o sistema público”.
Com todas essas opções – asseguradas por lei – à disposição, não há desculpas para prefeituras e governos não buscarem recursos para baratear o custo das tarifas de ônibus e trens.