Conta de Desenvolvimento Energético
Pesquisa do Idec revela que grandes montantes gerados por esse encargo tarifário, que deveria financiar programas sociais, são direcionados para atividades que não compõem o setor elétrico
Interligados nacionalmente por um grande sistema elétrico, os estados brasileiros – à exceção de Roraima, que é abastecido pela Venezuela - são atravessados por uma malha de transmissão, que, por sua vez, é de responsabilidade das distribuidoras, empresas que compram energia das usinas geradoras (hidrelétricas e termelétricas, principalmente) para suprir as regiões. Após essa negociação, a energia é transmitida do local de geração até o centro de distribuição e, em seguida, a casas, comércios, hospitais, escolas etc. Esse processo, claro, tem impacto no seu bolso. Dê uma olhada na sua conta de luz. Nela, você encontrará o item “encargos setoriais”, em que a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) se destaca, chegando a representar 12% do valor total. Apesar de previsto em lei, esse tipo de subsídio coloca na fatura do consumidor gastos com políticas públicas que deveriam passar pelo orçamento da União, segundo o Idec, que realizou uma pesquisa sobre o tema.
Criada pela Medida Provisória no 14/2001, convertida na Lei no 10.438/2002, a CDE nasceu com três finalidades: promover o desenvolvimento energético dos estados, a competitividade da energia produzida a partir de fontes de energias renováveis e a universalização do serviço de energia elétrica em todo o território nacio nal. Resumindo: seria um fundo abastecido por uma taxa cobrada dos consumidores e utilizado pelo governo federal para realizar importantes programas sociais, como o Luz para Todos, além de pagar indenizações às concessionárias.
Contudo, o Idec constatou que, ao longo do tempo, esses objetivos foram distorcidos. “Percebemos que os consumidores estão sendo cobrados inadequadamente. Não por falta de arcabouço legal que sancione a cobrança, mas pela falta de transparência na determinação de quais podem ser os agentes e as atividades econômicas beneficiadas, bem como dos critérios para revisão desses subsídios”, explica Clauber Leite, engenheiro, pesquisador do programa “Energia e Consumo Sustentável” do Idec e responsável pelo levantamento.
O Instituto verificou que grandes montantes gerados pela CDE são direcionados a atividades que não compõem o setor elétrico, como companhias de saneamento básico, grandes produtores rurais, shoppings centers, lojas de departamento, imobiliárias, construções, comércio de produtos farmacêuticos, fábricas de envasamento de água, organizações religiosas, cursos preparatórios, fabricação e comércio de automóveis, entre outros.
Para piorar, os critérios para a acumulação de subsídios pelos beneficiados variam. Os setores rural e de distribuição e serviço público de água e esgoto, por exemplo, não podem acumular subsídios. Já para os de irrigação e agricultura, bem como consumo e geração de fontes de energia incentivada, não há restrições legais. Os consumidores de baixa renda podem acumular qualquer tipo de subsídio.
O fundo destinado à CDE é composto, principalmente, das quotas anuais pagas pelo consumidor final, mediante encargo incluído nas tarifas, além dos pagamentos anuais realizados pelos concessionários e autorizados a título de Uso de Bem Público (UBP), das multas aplicadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e da transferência de recursos do Orçamento Geral da União. O problema é que, atualmente, aproximadamente 90% da receita vêm dos consumidores, o que não ocorria até 2013. Naquele ano, a maior receita saía da União.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
No site da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), coletamos todas as planilhas disponíveis de 2013 a 2018, com dados sobre os subsídios. Tínhamos em mãos um banco de dados enor- me. Assim, pesquisamos os CNPJs de alguns beneficiários no site do Ministério da Fazenda e chegamos à descrição da atividade econômica exercida pelas empresas. Como o prazo para que as distribuidoras enviem seus dados para a Aneel foi adiado, não pudemos avaliar todas as distribuidoras atuantes no País, apenas as que já disponibilizaram suas informações.
Clauber Leite, pesquisador do programa “Energia e Consumo Sustentável”, do Idec
QUEM É FAVORECIDO?
A diferença na composição do fundo de 2013 para cá compromete a garantia da aplicação da lei para quem realmente necessita do benefício (com ele, consumidores de baixa renda podem ficar isentos de pagar pela energia elétrica ou, ao menos, receber descontos significativos). Por exemplo, os descontos aplicados ao consumidor rural estão próximos de R$ 3 bilhões em 2018, fora os R$ 800 milhões concedidos aos grandes produtores rurais irrigantes, o que desperta questionamentos sobre os favorecidos. Além disso, parte significativa dos subsídios foi criada há décadas – alguns há 45 anos –, mas somente alguns têm horizontes definidos. A maioria não possui objetivos evidentes, acompanhamento ou previsão de finalização.
Nesse sentido, não custa lembrar que a “bancada ruralista” conta com 261 parlamentares em Brasília (DF), entre deputados federais e senadores, sendo a frente legislativa mais numerosa e com maior poder de pressão para manter e até ampliar benefícios ao setor que representa. Atualmente, no Congresso, o número de projetos em tramitação para aumentar subsídios é muito maior do que para cortar. “Pode haver incentivo para que o próprio Executivo use esse tipo de saída para retirar gastos do orçamento e acomodar outras despesas no teto de gastos. Tem surgido várias propostas em diversos setores. Para que? Para o governo criar fundos fora do orçamento. E aí esse fundo assume uma determinada despesa, que, em tese, deveria ser assumida pelo orçamento”, disse o consultor legislativo do Senado, Rutelly Marques da Silva, em entrevista à Agência Canal Energia. Ex-assessor do Ministério de Minas e Energia, ele enfatizou a necessidade de conter as desigualdades sociais provenientes da transferência de renda da população mais pobre para os mais favorecidos. Além disso, menciona as distorções econômicas, como as manobras de recursos subsidiados para investimentos de grandes consumidores em autoprodução de energia.
Em nota oficial, a diretoria da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) avalia que a polêmica dos subsídios não é resolvida por “falta de vontade política” e diz que existe muita facilidade para que novos custos sejam repassados para o consumidor. O subsídio para o grande consumidor rural é um retrato fiel dessa facilidade. Um mesmo consumidor pode acumular descontos tarifários diversos, a depender da atividade praticada no campo. Nesses casos, podem ser acumulados benefícios no consumo residencial e na fabricação de produtos – com abatimento de 40% se o processo produtivo estiver conectado em baixa tensão e de 20% na alta tensão. Se houver irrigação, esse consumidor pode contar, ainda, com o subsídio à agricultura.
Em evento realizado pelo Idec e o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), em outubro, para discutir a reforma do setor elétrico e os impactos na sociedade brasileira, o ex-secretário-executivo do Ministério de Minas e Energia, Paulo Pedrosa, disse que o setor deve levar a discussão dos subsídios ao Congresso Nacional.
É IMPORTANTE QUE TODAS AS DISTRIBUÍDORAS ENVIEM OS DADOS À ANEEL, JÁ QUE QUALQUER AUMENTO NO VALOR DA CONTA DE LUZ PESA NO BOLSO DO CONSUMIDOR.
Clauber Leite, pesquisador do programa“Energia e Consumo Sustentável”, do Idec
DESCUMPRIMENTO DA LEI
A equipe de pesquisadores do Idec bem que tentou, mas não conseguiu acesso aos dados de todos os beneficiários de todas as concessionárias, pois estes não foram enviados à Aneel. Isso porque não foram cumpridos os prazos estabelecidos pela União e pela própria agência para divulgação dos números. “Ao contrário, optou-se por estender esses prazos”, critica Leite.
Em linhas gerais, os dados disponíveis no site da Aneel são inconsistentes. Após solicitação do Idec, a agência atualizou algumas informações, mas não todas. “É importante que todas as distribuidoras enviem os dados à agência, já que qualquer aumento no valor da conta pesa no bolso do consumidor”, argumenta o pesquisador. Apesar de o Decreto no 9.022/2017 determinar que a Aneel deve informar – com base em dados repassados pelas distribuidoras –, num prazo de 120 dias a partir da publicação, razão social/nome, CNPJ/CPF e valores recebidos pelos beneficiários da CDE; e de uma resolução normativa da própria agência regulamentar o ato do Poder Executivo; um novo instrumento normativo foi produzido pelo órgão, estendendo, sem explicações detalhadas, até 31 de julho de 2019 a data para o envio das informações referentes a 2016 e 2017.
O que se vê nesse cenário é um descumprimento da lei por parte da Aneel. A divulgação das informações é uma obrigação da agência, de acordo com a Lei no 9.427/1996, que estabeleceu ser dever da agência “regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica, em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal”. A lei ainda dispõe que as receitas e as despesas da CDE devem ser publicadas mensalmente na internet, com informações relativas aos beneficiários das despesas cobertas por ela e os respectivos valores recebidos. “A Aneel não deveria apoiar as empresas e negligenciar as informações. É dever dela tomar uma posição mais taxativa e incisiva e não prorrogar o prazo para envio dos dados”, finaliza Leite.
A Aneel não respondeu às perguntas feitas pela reportagem até o fechamento desta edição.