Dados em risco
Pesquisa do Idec aponta que, de 2015 a 2018, mais de 140 mil reclamações relacionadas a problemas com bancos de dados e cadastros de consumidores foram registradas no portal Consumidor.gov.br. E esse número pode aumentar bastante se as mudanças propostas para o cadastro positivo forem aprovadas
Você decide comprar uma geladeira. Vai até a loja, escolhe o produto e, na hora de pedir o financiamento, é informado que seu credit score (pontuação de crédito) é insuficiente. Como pode? Você paga as contas em dia, tem renda fixa, nunca sofreu restrições. Pois é. Essa cena – cada vez mais comum – tem deixado os consumidores muito insatisfeitos. Levantamento do Idec com base no portal Consumidor.gov.br, do Ministério da Justiça, revela que quase 40 mil reclamações relacionadas a bancos de dados e cadastros de consumidores – negativo e positivo – foram feitas apenas no primeiro semestre de 2018, 30,2% a mais do que no mesmo período do ano passado. Desde 2015, 141.093 queixas foram apresentadas. A Serasa Experian concentra 78%. Em seguida vem a Boa Vista SCPC, com 21,8%.
Bárbara Prado Simão, pesquisadora em direitos digitais do Idec e uma das responsáveis pelo levantamento, entende que o crescimento das reclamações está relacionado ao aumento do número de pessoas incluídas no cadastro positivo, somado a um maior conhecimento sobre a plataforma pública para solução de conflitos.
CADASTRO POSITIVO: PROMESSA E REALIDADE
Oficializado em 2011, o cadastro positivo foi “vendido” como uma forma de baratear a concessão de crédito no Brasil: a existência de um banco de dados com informações de hábitos de consumo e de pagamento de consumidores e pessoas jurídicas reduziria o risco de calote e, assim, a taxa de juros cairia. Nessa esteira surgiram ou se fortaleceram empresas gestoras que fazem a mediação entre o consumidor e uma instituição financeira ou comercial.
A ideia era ir na contramão do cadastro negativo, que reúne histórico de inadimplentes. Mas, na prática, os brasileiros não têm conseguido crédito com a facilidade prometida. E ficam sem entender o porquê. O levantamento do Idec mostra que o principal motivo das queixas é a falta de informação, garantida pelo artigo 6o do Código de Defesa do Consumidor. E em 70% dos casos, o problema são dados coletados, consultados, publicados ou repassados sem autorização. O Idec acredita que os números indicam uma alarmante ineficiência do mercado de avaliação de risco e elaboração de credit score no que diz respeito à informação do consumidor.
A SITUAÇÃO PODE PIORAR
Segundo o Idec, o número de reclamações pode aumentar muito com a aprovação do Projeto de Lei (PL) no 441/2017, que já passou pelo Senado e pode ser votado a qualquer momento no plenário da Câmara. Isso porque o texto propõe mudanças na Lei do Cadastro Positivo. A atuação do Idec, de pesquisadores e de outras organizações da sociedade civil tem sido importante para colocar a perspectiva do consumidor em debate. Desde o ano passado, o Instituto tem cobrado mudanças para proteger a população. Um dos pontos mais problemáticos é a inclusão automática dos cidadãos no cadastro positivo. “Defendemos que a lei permita às pessoas escolher se quer ou não estar nas bases de dados”, declara a pesquisadora do Idec.
Para a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), porém, é preciso que esse aspecto seja aprovado. A nova geração de empresas do setor financeiro, com forte base tecnológica, alega que as alterações na legislação são fundamentais para garantir a elas o acesso rápido a bases de dados utilizadas pelos bancos tradicionais. “É muito mais sensato, inclusivo e rápido. Isso é bom para todos”, resume o advogado José Luiz Rodrigues, conselheiro da ABFintechs. Nesse caso, quem não quer estar no cadastro teria de entrar em contato com a gestora de dados e pedir a exclusão.
Procuradas pelo Idec, as duas empresas que mais receberam reclamações também defenderam o PL. Vanessa Butalla, diretora jurídica da Serasa Experian disse que “hoje, o mercado consegue saber se uma pessoa está ou não inadimplente, mas não vê o histórico de pagamentos realizados e a sua capacidade de assumir novos compromissos. O cadastro positivo permite ver isso”. Já Dirceu Jodas Gardel Filho, diretor de operações da Boa Vista SCPC, acredita que “as alterações propostas permitirão que o consumidor usufrua, de forma mais rápida e efetiva, os benefícios na economia buscados com o cadastro positivo, sem perder de vista a sua proteção, que está mantida no texto proposto”.
Contudo, o Idec alerta que o aumento exponencial de pessoas no banco de dados agravará a já crítica situação, com risco de elevação do número de ações judiciais. “A inclusão dos cidadãos no cadastro positivo não pode ser desvinculada de regras claras para informação e de resolução para casos de incidentes de segurança, como uso indevido e vazamento”, comenta Simão.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
Consultamos o banco com reclamações de con- sumidores da plataforma Consumidor.gov.br, do Minis- tério da Justiça. Selecionamos todas as reclamações disponíveis desde o primeiro semestre de 2015 referen- tes a bancos de dados e cadastros de consumidores. O próprio site classifica as queixas em diferentes catego- rias. Então, utilizamos essas categorias para filtrar os dados e identificar, quantitativamente, quais proble- mas eram os mais recorrentes.
Bárbara Prado Simão, pesquisadora em direitos digitais do Idec
FALTA DE CLAREZA SOBRE O SCORE
Em 2014, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que as gestoras de bancos de dados sejam transparentes com os consumidores, ou seja, que expliquem claramente como chegaram ao score, a nota que define se terão ou não acesso a crédito. Essa nota vai de 0 a 1.000, cruzando uma série de informações que o consumidor desconhece. “A decisão garante acesso às fontes dos dados considerados na formação do histórico de crédito e das informações pessoais avaliadas. Entender como são pontuadas é um direito que as pessoas têm”, pontua Simão.
Houve um avanço em garantir acesso ao score total: as duas principais gestoras, Serasa Experian e Boa Vista SCPC, passaram a oferecer consulta gratuita em seus sites. Isso explica por que a “dificuldade de acesso a dados pessoais ou financeiros” foi o único aspecto que apresentou diminuição consistente de queixas, de 64,4%, entre o 1o semestre de 2017 e o 1o semestre de 2018. Porém, para o Idec esse é um passo incompleto, já que o cidadão continua sem entender como a nota se formou. Laura Schertel Mendes, professora do Instituto Brasiliense de Direito Público e da Universidade de Brasília defende o acesso à pontuação de crédito, porque se preocupa com o risco de discriminação de consumidores “A base de dados pode ter elementos enviesados. Por exemplo, inadimplência de negros ou de um bairro de baixa renda. A possibilidade de ver meu dado concreto é importante para poder apontar eventuais falhas”, ela diz.
Além da dificuldade de acessar o score, os consumidores se queixam de dificuldade para sair do cadastro e retificar informações.
TRANSPARÊNCIA OU SEGREDO?
Rodrigues, da ABFintechs, entende que é preciso manter o sigilo sobre como as gestoras chegam ao score. Do contrário, perderiam o diferencial em relação aos concorrentes. No entanto, após pressão do Idec e de outras entidades, o projeto de lei passou a prever as informações que não podem ser consideradas na formação da pontuação de crédito: origens social e étnica, saúde, informação genética, sexo e convicções políticas, religiosas e filosóficas. Além disso, o texto atual estabelece que o gestor de dados coloque em seu site, de forma clara, a política de coleta e utilização de dados pessoais. Porém, joga para futura regulamentação pelo Poder Executivo o escopo das informações utilizadas e quais as punições previstas em caso de vazamento. “O PL informa que tudo o que não é informação relevante para a composição da nota não deve ser usado. Mas o que é informação relevante? Se você tem um perfil em uma rede social que gera valor para as empresas que estão usando essa nota, esses dados passam a ser relevantes para elas. Do nosso ponto de vista seria algo nocivo”, afirma Simão, do Idec.
DEFENDEMOS QUE A LEI PERMITA ÀS PESSOAS ESCOLHER SE QUER OU NÃO ESTAR NAS BASES DE DADOS
Bárbara Simão, pesquisadora em Direitos Digitais do Idec
Para Mendes, da UnB, a tensão entre o sigilo empresarial e o direito do consumidor terá de ser resolvida pelo poder público. Ela recorda que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, sancionada este ano, prevê que as pessoas podem cobrar a revisão de informações utilizadas em cadastros. O problema é que o presidente Michel Temer vetou um dos pontos centrais: a criação de uma autoridade nacional de proteção de dados. “Não preciso expor o código do algoritmo para toda a sociedade, mas posso, numa auditoria com a autoridade pública, mostrar por que minha análise não é discriminatória”, argumenta.
Há ainda um aspecto no qual o projeto colide com o Código de Defesa do Consumidor. Enquanto prevê prazo de dez dias corridos para a correção de informações, a legislação consumerista fala em cinco dias úteis. Essa demora poderia prejudicar o cidadão que tem urgência na mudança da nota, resultando em eventuais processos. Para o Idec, boa parte das queixas poderia ser evitada se as empresas oferecessem, na internet, canais para a solução de problemas.
Faça o download gratuito do manual Por trás da pontuação de crédito: conheça os seus direitos em https://idec.org.br/caixapreta e acesse a página Seus Dados em https://idec.org.br/dadospessoais