Pesquisa do Idec
Embora 515 Projetos de Lei tenham sido propostos na última década com o objetivo de alterar direitos do consumidor, apenas um conseguiu, de fato, realizar mudança em um artigo.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) foi considerado uma das leis mais avançadas do mundo para proteção do consumidor na época em que foi aprovado, em 1990. Resultado de um exaustivo trabalho jurídico, o CDC, dividido em seis capítulos, tem caráter sistêmico e pode ser aplicado a qualquer relação de consumo. Embora eficiente em seu propósito, ele tem sido, nos últimos 15 anos, alvo de discussões, principalmente o capítulo I (seus 60 artigos tratam dos direitos do consumidor e são o “coração do Código”).
Em dezembro de 2010, foi criada uma comissão especial de juristas – muitos deles formuladores do CDC – para apresentar propostas para atualização do Código. Durante dois anos, essa comissão trabalhou em três temas: crédito e superendividamento, comércio eletrônico e ações civis públicas. Como resultado, foram propostos três Projetos de Lei (PLs). Contudo, o sobre ações civis públicas foi arquivado devido a sua complexidade, e os outros dois ainda não foram aprovados pelas duas casas do Congresso Nacional: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. “O PL no 3.514/2015, sobre comércio eletrônico, está no plenário da Câmara, e o PL no 3.515/2015, sobre crédito e superendividamento, já passou pela comissão de direitos do consumidor e está aguardando a indicação de uma comissão especial. Mas a Febraban [Federação Brasileira de Bancos] parece querer mudar o texto desse PL, impedindo o seu avanço”, informa Cláudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), membro do conselho consultivo do Idec e da comissão que pretende atualizar o CDC.
Mas além desse conhecido projeto de reforma, existem diversos outros que não aparecem na mídia. Assim, o Idec resolveu investigar os PLs propostos nos últimos 10 anos – de 2008 a 2018 – que podem ameaçar os direitos do consumidor. Ao todo, são 549. Destes, 515 estão relacionados ao capítulo I (422 propostos na Câmara e 95, no Senado). Ou seja, aproximadamente 56 projetos por ano e cinco por mês tentam alterar os direitos dos consumidores para o bem ou para o mal. No entanto, embora as ameaças sejam muitas, apenas um PL conseguiu, de fato, mudar um artigo da lei consumerista brasileira (veja qual foi ele no quadro “PL que alterou o CDC”). Para Marques, “o parlamento brasileiro deveria aprovar os PLs no 3.514 e no 3.515 em vez de elaborar essa quantidade impressionante de projetos que podem fragmentar o CDC e reduzir os direitos por ele garantidos”. Leonardo Roscoe Bessa, promotor de justiça do Distrito Federal, concorda: “Lamento que haja tantos PLs que restringem direitos dos consumidores e ignoram a organização do CDC, que é um conjunto sistemático de normas que protegem o lado mais vulnerável da relação de consumo”.
Para o advogado Rafael Zanatta, pesquisador do Idec em Telecomunicações e Direitos Digitais e responsável por este levantamento, o elevado número de propostas visando a mudanças no CDC pode ser entendido como “palanque eleitoral” de diferentes partidos. “Muitos projetos de lei são apresentados como consequência de discussões com impacto midiático, e parlamentares podem se aproveitar dessa oportunidade para apresentar PLs relacionados à defesa do consumidor para angariar votos”, adverte. O estudo do Idec foi dividido em duas partes: uma quantitativa – cujos resultados são apresentados nesta reportagem – e outra qualitativa – que será divulgada no segundo semestre deste ano.
Veja, a seguir, os resultados quantitativos.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
“Analisamos 515 Projetos de Lei (PLs) que pretendem alterar artigos do Capítulo I do Código de Defesa do Consumidor, que trata dos direitos dos consumidores. Esses PLs, propostos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal de 2008 a 2018 foram consultados no site desses órgãos. Foram avaliados quatro quesitos: 1. se os PLs eram ou não fragmentadores, ou seja, se a proposta poderia originar um regulamento específico; 2. em que fase de tramitação encontram-se; 3. quais os temas mais ameaçados; 4. quais os partidos que mais propuseram alterações”.
Rafael Zanatta, advogado e pesquisador do Idec em Telecomunicações e Direitos Digitais
Dos 515 projetos propostos na Câmara dos Deputados e no Senado, apenas um conseguiu modificar, de fato, o Código de Defesa do Consumidor. Foi o PL no 3.411/2015, que alterou o artigo 8o do Código de Defesa do Consumidor. Ele obriga o fornecedor a higienizar equipamentos e utensílios utilizados no fornecimento de produtos e serviços, além de informar, de maneira ostensiva e adequada, quando for o caso, sobre o risco de contaminação.
PLS FRAGMENTADORES: A MINORIA
Os pesquisadores do Idec classificaram os 515 projetos em fragmentadores – aqueles que criam regras específicas para um setor regulado ou uma determinada área comercial (por exemplo, um PL sobre recall de veículos automotores) – e não fragmentadores – que respeitam a lógica do Código. “O CDC é uma lei principiológica, generalista e abrangente que pode ser aplicada a qualquer relação de consumo. Nesse sentido, PLs que tratam de temas já regulados podem enfraquecer o caráter sistêmico do Código”, declara Zanatta. Ao contrário do esperado, “somente” 109 PLs são fragmentadores (21,7%). “Percebemos que os legisladores entendem a lógica sistêmica e principiológica do CDC. Daí a baixa quantidade de projetos que viraram norma jurídica: apenas um”, comemora o advogado do Idec.
Já Marques, da UFRGS, preocupa-se com os PLs fragmentadores. “A quantidade de PLs fragmentadores demonstra desconhecimento do trabalho de atualização do CDC e um desprezo pelo microssistema do Código, que fica ameaçado. Esse mandamento constitucional não pode ser fragmentado quase 30 anos depois [de sua criação]”, indigna-se.
EM QUE PÉ ESTÃO OS PLS?
Os PLs também foram classificados em cinco níveis de acordo com a fase de tramitação em que se encontram: 0. O PL ainda não foi apreciado por comissão de mérito; 1. O PL passou por uma comissão; 2. O PL passou por duas ou três comissões; 3. O PL está sendo analisado por uma comissão especial; 4. O PL está tramitando em regime de urgência constitucional ou regimental; 5. O PL foi sancionado e transformado em Lei. Entretanto, essa classificação só foi aplicada aos projetos propostos na Câmara dos Deputados, pois o site do Senado não apresenta o regime de tramitação dos PLs, revelando falta de transparência do órgão.
Dos 515 PLs avaliados, 212 foram considerados avançados, ou seja, estão entre os níveis 2 e 5, sendo que 13 tramitam em caráter de urgência. Esses projetos serão estudados na etapa qualitativa da pesquisa, uma vez que podem representar ameaça aos direitos dos consumidores.
PARTIDOS POLÍTICOS MAIS ATUANTES
O levantamento constatou que partidos de centro-direita, como PMDB, PP e PSDB, foram os que mais propuseram modificações no CDC. Não surpreendeu o fato de o PMDB ser o “campeão” de projetos, pois o partido é o segundo com mais representantes no Congresso Nacional. Já os partidos de esquerda são os menos interessados em alterar a lei consumerista.
O QUE OS PLS QUEREM MUDAR?
Por fim, os PLs foram divididos em temas, levando em consideração a regra modificada e o objetivo visado com a proposta.
Das 45 categorias encontradas, as que mais mobilizaram o Congresso Nacional foram: banco de dados, direito à informação, vício de produtos e serviços, práticas abusivas, cobrança de dívidas e contratos. “As razões para banco de dados liderar podem ser mais bem verificadas na pesquisa qualitativa, mas podemos inferir que tem a ver com as discussões sobre o cadastro positivo e com a ausência de uma lei geral de proteção de dados pessoais”, avalia o pesquisador do Idec.
Entre os PLs fragmentadores, destacaram-se os que discutem o direito à informação (15 propostas), telecomunicações e direitos digitais (14) e serviços financeiros (13). A grande quantidade de projetos referentes a setores regulados pode indicar um problema de eficiência das agências reguladoras, principalmente da Agencia Nacional de Telecomunicações (Anatel), já que telecom é o segundo tema com mais PLs propostos e há cinco anos é o líder de reclamações no Brasil.