Alvos do consumo
Pesquisa do Idec detecta que propagandas de alimentos na TV miram crianças ilegalmente, anunciam majoritariamente produtos não saudáveis e usam técnicas que podem ser consideradas abusivas e enganosas
Se a intenção é vender fast-food, uma propaganda muito bem feita mostra ingredientes naturais e frescos sendo preparados durante um agradável encontro entre amigos. Já para aquele achocolatado com excesso de açúcar, o destaque é apenas para a presença de cálcio que dá força a uma menina que brinca feliz. São apenas dois exemplos, mas é assim, escondendo o que faz mal e induzindo o público ao erro, que a publicidade de alimentos tenta influenciar e fidelizar quem está à frente da TV. Um monitoramento das propagandas de alimentos exibidas em horário nobre de seis canais de televisão, feito pelo Idec, levantou números que revelam essas práticas e preocupam especialistas.
A pesquisa detectou que, de todos os anúncios de produtos alimentícios monitorados, 20% visam diretamente ao público infantil, o que é irregular. Segundo Ekaterine Karageorgiadis, advogada e coordenadora do projeto Criança e Consumo do Instituto Alana, “se houvesse apenas uma propaganda, já seria preocupante”. Ela lembra que toda e qualquer publicidade voltada diretamente à criança é vedada por quatro diferentes dispositivos legais: a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Resolução no 163/2004 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
“O cenário piora quando se vê que as propagandas são de alimentos não saudáveis destinados a crianças, que estão em fase de crescimento e desenvolvimento”, diz Laís Amaral, nutricionista do Idec e responsável pela pesquisa.
Outro achado do estudo foi que, durante programas claramente voltados ao público infantil, como desenhos animados, 17,8% dos anúncios eram de produtos alimentícios. No entanto, se consideradas também as telenovelas (de acordo com a consultoria GfK Evogenius Reporting, esse é um dos gêneros mais assistidos pelo público infantil), chega-se a estrondosos 57,8% de publicidade de alimentos que atinge as crianças.
Para Adalberto Pasqualotto, professor de direito do consumidor da PUC-RS, a estratégia é influenciar as crianças para fidelizá-las e também atingir toda a família. “É nesse ponto que as novelas são importantes. É um momento culminante para a publicidade de alimentos, pois todo o público-alvo está reunido, tanto quem vai consumir diretamente, quanto o público de influência – quem compra e quem pede para comprar”, explica.
Karageorgiadis concorda e acrescenta que as crianças funcionam como “promotoras de vendas”, retransmitindo as mensagens a seus pais e também a outras crianças. Na opinião dos especialistas ouvidos, isso faz das crianças um público-alvo extremamente valioso para a indústria de alimentos. “São futuros consumidores que devem ser fidelizados o quanto antes para comprarem cada vez mais”, denuncia Amaral. Pasqualotto acrescenta que as crianças são indutores do consumo dos adultos, atuando como verdadeiros influenciadores dentro da família. “É o que se convencionou chamar de assédio de consu- mo”, afirma.
A pesquisa detectou também que a maioria (60%) das propagandas é relativa a alimentos ultraprocessados – formulações industriais com excesso de açúcar, gordura, sódio e aditivos alimentares, o que os torna não saudáveis e cujo consumo é desencorajado pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde. “Apesar disso, são produtos feitos para serem vendidos em larga escala. Com esse intuito, a indústria se utiliza de publicidade massiva e, na maioria das vezes, enganosa, como alegações que não levam em consideração o risco à saúde que eles acarretam”, observa a nutricionista do Idec.
COMO FOI FEITA A PESQUISA
“Uma empresa de clipagem de mídia realizou a gravação dos intervalos comerciais da programação televisiva veiculada em horário nobre (das 18h às 0h) de quatro canais de TV aberta (Globo, SBT, Record e Band) e dois canais de TV por assinatura (Discovery Kids e Cartoon Network), no dia 28 de novembro de 2017.
Optamos por estudar a programação de TV por ter a televisão significativa relevância no dia a dia da população brasileira, estando presente em grande parte dos lares”.
Laís Amaral, nutricionista e pesquisadora do Idec
Técnicas: Valores, Afetos e Abusividade
A alegação de benefícios para a saúde foi uma das técnicas que a pesquisa identificou nas peças publicitárias, além da tentativa de associar o produto a certos valores, emoções e afetos – o que, em muitos casos, caracterizou abusividade e enganosidade. A pesquisa constatou que, de 21 peças publicitárias que faziam alegações de benefícios à saúde, nada menos que 19 anunciavam, na verdade, produtos ultraprocessados, sabidamente maléficos à saúde – uma clara contradição, segundo os especialistas.
É o caso da propaganda do Toddynho, achocolatado voltado ao público infantil, que destaca o fato de a bebida ser rica em cálcio, quando sua característica nutricional mais relevante – o excesso de açúcar – não é mencionada. “É publicidade enganosa, porque, ainda que parcialmente, é falsa. Se é fato que o alimento contém cálcio, por outro lado, a sua composição representa um risco à saúde. Portanto, induz o consumidor ao erro, especialmente tratando-se de crianças”, analisa o professor da PUC.
Outra estratégia identificada foi a tentativa de vincular produtos alimentícios à alimentação caseira, tradicional, natural e feita com alimentos frescos. Dos 22 produtos que tentaram essa artimanha, 19 eram exatamente o oposto disso, ou seja, ultraprocessados. É o caso da propaganda do McDonald’s que mostra amigos manipulando ingredientes frescos e preparando juntos uma refeição – quando se sabe que os fast-foods usam basicamente ingredientes processados e ultraprocessados, além de serem adquiridos prontos para o consumo. “A referência a alimentos frescos e naturais e ao ‘comer junto’ são elementos importantes para a decisão de compra. Sabendo disso, a indústria alimentícia apropria-se de tal discurso para passar a mensagem de que seus produtos são saudáveis e associá-los a momentos de felicidade junto a pessoas queridas”, declara Amaral.
A pesquisa aponta que casos como esse podem caracterizar abusividade por induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua saúde, o que contraria o CDC. O professor Pasqualotto lembra que eles ofendem inclusive o direito amplo à saúde, largamente consagrado e garantido pela Constituição Federal.
CONSEQUÊNCIAS PARA A SAÚDE
A nutricionista do Idec alerta que a veiculação de publicidade de alimentos não saudáveis é prejudicial para a saúde de todos, especialmente das crianças, que são mais vulneráveis e incapazes de discernir a mensagem publicitária do restante da programação e das informações veiculadas. Principalmente, porque a maioria das propagandas são referentes a produtos ultraprocessados. “O consumo habitual desses produtos, cuja quantidade de açúcares, sódio, gorduras e aditivos alimentares é imensa, pode causar excesso de peso e doenças relacionadas, como diabetes, pressão alta e até mesmo câncer”, alerta a pesquisadora.
Para Pasqualotto, o efeito nocivo vai além do impacto à saúde, atingindo também a consciência social. “A tolerância com a publicidade abusiva cria a falsa imagem de que se trata de uma prática lícita. Um falso discurso de liberdade [de expressão] protege esse tipo de publicidade, estigmatizando quem se põe em posição contrária”, protesta.
O QUE DIZEM AS EMPRESAS
- A PepsiCo, fabricante do achocolatado Toddynho, afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que a companhia adota, desde 2009, a Política de Comunicação de Marketing para Crianças do IFBA (International Food & Beverage Alliance), que restringe, de acordo com critérios nutricionais específicos, a publicidade direcionada a crianças menores de 12 anos. A empresa afirma também que a campanha de Toddynho atende aos requisitos estabelecidos pela política.
- O McDonald’s não quis se pronunciar.
MAIS FISCALIZAÇÃO
De acordo com os especialistas, não faltam leis que impeçam ou regulem a publicidade enganosa e abusiva em geral, e também aquela voltada ao público infantil, em particular. Além dos já mencionados CDC, ECA, resolução do Conanda e da própria Constituição, a Anvisa tem uma resolução que regula a propaganda de alimentos ultraprocessados desde 2010, mas que se encontra suspensa pela Justiça após contestação pela Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia).
Para Karageorgiadis, o que falta é fortalecer os sistemas de fiscalização para que possam atuar com base nas leis que já existem. “Precisamos do fortalecimento de órgãos de defesa do consumidor, para que consigam fazer seu trabalho de forma mais eficiente, que é a fiscalização, o monitoramento e a aplicação de multas e ações judiciais. Isso é bastante falho”, defende.