Caminhada mais segura
Desprotegidos e relegados a segundo plano nas cidades, pedestres poderão ser multados a partir de abril. Conheça medidas mais efetivas para aumentar a segurança e incentivar a mobilidade a pé
A partir de abril de 2018, pedestres poderão ser multados caso cometam infrações de trânsito, como atravessar fora da faixa, segundo uma nova resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), aprovada em outubro do ano passado (saiba mais sobre a polêmica no quadro abaixo). Especialistas em mobilidade ouvidos pela Revista do Idec afirmam que a medida é apenas mais um capítulo da longa história de priorização dos carros em detrimento dos pedestres – que sempre foi a tônica no desenvolvimento das cidades brasileiras.
“A cultura que prioriza os automóveis criou uma engenharia de tráfego altamente especializada na circulação de veículos e pouco atenta aos pedestres. Nunca foi organizada no Brasil uma ampla política pública de mobilidade a pé”, critica Rafael Calabria, pesquisador do Idec sobre o tema.
Nesse contexto, sobram problemas para quem usa as próprias pernas para se locomover nas ruas, como faixas de pedestre ausentes ou mal posicionadas, tempo de semáforo insuficiente para travessia, calçadas estreitas, com pavimento ruim e obstáculos como postes e pouca iluminação – tudo isso potencializado por um ambiente totalmente direcionado para a velocidade, fluidez e prioridade dos veículos motorizados.
O resultado disso é a altíssima vulnerabilidade dos pedestres, que apesar de se deslocarem a uma velocidade baixa (5 km/h) – e, portanto, de menor risco – representaram 20% das mortes em acidentes de trânsito no Brasil em 2015 (mais de 8 mil óbitos), de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
“Pedestres são os usuários do sistema de mobilidade [urbana] mais vulneráveis, pelas características do seu deslocamento: sem proteção por qualquer tipo de estrutura física, em contato direto com o ambiente voltado a carros e ocupando a menor porção deste”, explica Mali Malatesta, especialista em Mobilidade a Pé da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).
MULTAS PARA PEDESTRES
Previstas no Código de Trânsito Brasileiro desde 1997, as multas para pedestres e ciclistas ainda não eram aplicadas, pois careciam de regulamentação. Com a canetada do Contran, em outubro de 2017, quem atravessar fora da faixa, ou mesmo praticar esporte ou lazer nas ruas sem autorização da prefeitura, por exemplo, pode ter de desembolsar R$ 44,19.
“É bastante injusto, pois o pedestre não tem uma infraestrutura que o permita fazer travessias e trajetos de acordo com as suas necessidades. Ele é obrigado a respeitar infraestruturas montadas para outra lógica, a do carro”, critica Rafael Calabria, do Idec. O pesquisador alerta ainda para a inocuidade da medida, pois as multas não oferecem uma forma de o pedestre se colocar numa situação mais segura.
Marta Obelheiro, do WRI, acrescenta que a sanção pode significar até desperdício de recursos. “Ela abre caminho para que se despendam esforços para fiscalizar quem é vítima, quando o momento seria de priorizar fatores de risco, como o excesso de velocidade”.
MEDIDAS SIMPLES
Para reverter esse cenário de perigo para o pedestre, os especialistas apontam que não há uma solução única, mas diferentes medidas – algumas de fácil e rápida implementação e outras de longo prazo. “Para uma cidade ser caminhável, as rotas dos pedestres devem seguir três diretrizes: serem seguras, confortáveis e interessantes”, diz Paula Santos, coordenadora de Mobilidade Ativa do WRI (World Resources Institute) Brasil.
Em termos de segurança, uma das iniciativas defendidas com veemência por todos os especialistas ouvidos é a redução da velocidade máxima das vias. “É uma medida de baixo custo e rápida implementação. Limites de velocidade ainda mais baixos devem ser adotados em áreas com grande movimentação de pedestres e ciclistas, como entorno de escolas e hospitais”, explica Marta Obelheiro, coordenadora de Segurança Viária do WRI.
Para a medida ser bem sucedida, ela ressalta a importância de um trabalho de comunicação junto à população. “Muitas vezes, a redução da velocidade esbarra na ideia equivocada de que pode haver aumento dos congestionamentos. É preciso explicar para a população [que isso não é verdade]”. Obelheiro lembra que, na França, a redução do limite de velocidade, nos anos 90, evitou mais de 14 mil acidentes com vítimas só nos primeiros dois anos de implantação. “Na Noruega, a mesma medida reduziu em 45% os acidentes fatais”, destaca.
Outro exemplo de medida rápida e barata é aumentar o tempo de travessia dos pedestres em semáforos, que hoje dão prioridade ao fluxo de veículos. Reprogramá-los para atender prioritariamente aos pedestres é uma medida de resultado rápido e custo zero para os cofres públicos, aponta Malatesta.
Também é possível melhorar a adequação das calçadas de maneira célere, sem necessidade de obras e interdições. Uma opção para isso é a demarcação de expansão dos passeios, como a faixa verde para pedestres em São Paulo (veja foto abaixo). De acordo com Calabria, a medida traz bons resultados de segurança e é barata.
MAIS ALTERNATIVAS
Os especialistas lembram ainda de medidas que sequer envolvem engenharia de tráfego, mas são muito desejáveis por tornar o trajeto a pé mais confortável e interessante – os outros pressupostos da caminhabilidade. “Todo ambiente urbano é um estimulador ou desestimulador da caminhada: melhorar iluminação, arborização, mobiliário – como bancos, minipraças, banheiros públicos –, além de sinalização e informação voltadas especificamente para o pedestre são pontos determinantes”, diz o pesquisador do Idec.
Nesse sentido, uma ideia inovadora é o conceito de pisos térreos ativos, que nada mais é do que a abertura do pavimento de edifícios, no nível da rua, aos transeuntes, com comércio, serviços ou mera passagem de pedestres (para cortar caminho, por exemplo). “Eles aumentam a sensação de segurança dos pedestres e tornam a caminhada mais agradável”, defende Santos, do WRI.
Entre as medidas de médio prazo estão as intervenções de “acalmamento de tráfego” (do termo em inglês traffic calming) – como rotatórias e estrangulamento de pista – que forçam os veículos a reduzirem a velocidade, garantindo travessias mais seguras (veja infográfico na página 31). “Com um desenho mais restritivo, os motoristas naturalmente reduzem a velocidade, pois a geometria induz a isso. Há muito mais respeito e segurança para o pedestre”, explica Calabria.
Já no longo prazo, o pesquisador do Idec ressalta que é necessário resolver o descompasso administrativo que transforma a mobilidade a pé em uma “colcha de retalhos”. “Não há centralidade no planejamento, pois quem cuida da travessia são os órgãos de trânsito, que o fazem priorizando os carros; e quem planeja as calçadas são a secretaria de obras e as subprefeituras. Sem falar que a responsabilidade pela manutenção recai sobre o proprietário ou inquilino do imóvel”, critica.
“Os planejadores não conseguem enxergar o andar a pé como parte da rede de mobilidade e muito menos reverter o paradigma para colocar o pedestre no topo de importância, conforme determina a Política Nacional de Mobilidade Urbana”, concorda Malatesta.
PRIMEIROS AVANÇOS
Apesar do cenário desfavorável aos pedestres, algumas cidades brasileiras já adotam iniciativas positivas. Entre os exemplos citados pelos especialistas estão a redução de velocidades máximas, em São Paulo (SP) – que já sofreu reveses após implantada; a aprovação de um plano diretor que dá bastante importância para o transporte ativo (pedestres, ciclistas etc.), em Joinville (SC); o Plano Estratégico de Calçadas, em Curitiba (PR); e as adaptações viárias em favor do pedestre, em Fortaleza (CE).
“Mas ainda há muito o que melhorar. As cidades foram construídas durante décadas tendo o carro como foco principal. Reverter essa lógica levará tempo, mas a mudança já começou”, analisa Santos, da WRI, com otimismo.
No outro extremo, está justamente a capital federal, Brasília (DF), que costuma ser apontada como um exemplo avesso ao ideal para o pedestre. “É o típico caso de aplicação do urbanismo moderno, em que a cidade para as pessoas foi um conceito esquecido. A pouca infraestrutura que define os trajetos a pé é submissa àquela dirigida aos veículos motorizados, sacrificando quem se atreva a caminhar”, analisa Malatesta.
Calabria acredita que os avanços ainda são incipientes e pontuais. “No Brasil, a discussão ainda é bastante recente, então temos ações em apenas algumas cidades”, diz. Mas, se serve de alento aos brasileiros, o pesquisador do Idec desconstrói o mito de que exista um “padrão europeu” de mobilidade a pé. “Temos alguns bons exemplos de cidades de médio porte, como Copenhague e Amsterdã, mas, via de regra, as grandes metrópoles do mundo foram impactadas pela política voltada aos carros e, hoje, começam a avançar com medidas específicas, como é o caso de Nova York e Londres”, contextualiza.
Por aqui, ao que parece, há uma longa caminhada pela frente.