Indulgência energética
Pesquisa mostra que aparelhos de ar-condicionado e geladeiras vendidos no Brasil são pouco eficientes no consumo de energia elétrica em comparação com outros países. Norma sobre o tema está em revisão, mas novos parâmetros pouco devem mudar o mercado nacional
Não é novidade que a tarifa de energia elétrica no Brasil é muito cara e só aumenta. Em 2018, a conta de luz deve subir entre 10% e 15%, segundo especialistas. Mais uma vez, o reajuste ocorrerá em decorrência do acionamento de usinas termelétricas para suprir a demanda que, pela falta de chuvas, só as hidrelétricas não são capazes de suportar. Desde o “apagão” de julho de 2001, ficou clara a falta de planejamento no setor elétrico, que leva a esse permanente aumento de custos para gerar energia, consequentemente repassado ao consumidor.
O que surpreende é que isso também se repete na indústria que produz bens de consumo e nas autoridades responsáveis pelos padrões mínimos de eficiência energética de equipamentos. Uma pesquisa realizada pelo Idec constatou que os aparelhos de ar-condicionado e refrigeradores vendidos no Brasil são muito mais gastões do que similares vendidos em outros países. O levantamento verificou que o modelo de ar-condicionado mais eficiente à disposição dos brasileiros não seria nem vendido em outros nove países; e uma geladeira comercializada aqui consome mais que o dobro de energia do que uma vendida nos Estados Unidos.
Ao lado do chuveiro elétrico, os refrigeradores são os principais vilões da conta de luz dos brasileiros, responsáveis por 20% do consumo em uma residência; o ar-condicionado fica em terceiro lugar, com 17%, segundo estudo da Empresa de Pesquisa Energética, de 2016. “A participação do refrigerador e do ar-condicionado na conta de energia tende a aumentar, pois o uso deles cresce no mundo todo, tanto porque os aparelhos estão com preços mais acessíveis quanto porque extremos de temperatura são mais frequentes”, destaca Clauber Leite, pesquisador em energia do Idec.
Nesse cenário, a eficiência energética de eletrodomésticos é um instrumento importante a serviço de governos, indústrias e consumidores. No Brasil, os índices de eficiência são indicados na chamada Etiqueta de Conservação de Energia, obrigatória em refrigeradores e ares-condicionados há mais de 20 anos. Basicamente, a etiqueta classifica os equipamentos de A (mais eficientes) a D (menos eficientes).
No entanto, a pesquisa também verificou que, embora a norma que define parâmetros de eficiência energética para refrigeradores e ares-condicionados esteja em processo de revisão, as novas regras propostas pelo Ministério de Minas e Energia (MME) são tímidas e pouco vão mudar o mercado nacional. “A maioria das empresas no Brasil já possui aparelhos acima dos níveis que a proposta quer estabelecer”, lamenta Leite. Veja, a seguir, mais detalhes dos resultados da pesquisa.
“A pesquisa tomou como referência os índices de eficiência energética de aparelhos de ar-condicionado tipo ‘Split Hi-Wall’ e de refrigeradores tipo ‘combinado frost-free’, por serem os mais presentes no mercado nacional e por haver similares lá fora. Para o ar-condicionado, comparamos os índices dos equipamentos do Brasil com os de outros nove países: Arábia Saudita, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia, Japão, México e Vietnã; para os refrigeradores, o comparativo foi apenas com Estados Unidos e Índia, que têm clima parecido com o brasileiro.
Todos os dados sobre o consumo de energia dos aparelhos foram colhidos nas agências responsáveis por estabelecer os índices de eficiência energética em cada país”.
Clauber Leite, pesquisador em energia do Idec
AR-CONDICIONADO: POUCO EFICIENTE
Nos aparelhos de ar-condicionado, a eficiência energética é expressa por um número (chamado de CEE), que é mais alto quanto maior a eficiência do equipamento. Entre os modelos avaliados, o mais eficiente vendido no Brasil tem CEE de 5,09, o mínimo exigido nos EUA é 11. Na média, os equipamentos nível A vendidos aqui têm 3,3 de eficiência, o que significa que não poderiam ser vendidos em nenhum dos outros nove países analisados – e a lista não tem só nações de “primeiro mundo”, inclui também algumas de patamar econômico semelhante ou inferior ao brasileiro, como México e Vietnã. Veja a comparação no gráfico abaixo.
Além disso, para se ter uma ideia do quanto nossos parâmetros de eficiência energética são indulgentes com a indústria, basta dizer que cerca de 70% dos atuais modelos Split Hi-Wall vendidos no País já se enquadram nos níveis A e B, que entrariam em vigor só dois anos após a publicação da nova portaria sobre o assunto, de acordo com a proposta do MME que passou por consulta pública, encerrada em novembro de 2017. Dos aparelhos atualmente no mercado, 56% já estão dentro da nova classificação A proposta, com um CEE mínimo de 3,23; e 16%, na classificação B, que exige 3,02.
Mesmo deixando de lado os índices absolutos nos outros países, a evolução deles ao longo dos anos demonstra como o Brasil anda devagar nesse quesito. No Japão, entre 1995 e 2005, o CEE saiu de 2,55 para 5,10, ou seja, avançou 100%; na Coreia do Sul, a melhora de 100% do CEE ocorreu em oito anos (entre 2008 e 2015); no Brasil, se os níveis propostos forem aprovados agora e começarem a valer em 2019, teremos uma melhora de apenas 26% em 11 anos.
“Um dos papéis dos níveis mínimos de eficiência é forçar o mercado brasileiro a manter-se no mesmo patamar tecnológico dos demais países, impedindo a prevalência de produtos obsoletos. Considerando que um ar-condicionado tem vida útil média de 15 anos, o que se está fazendo ao colocar esses aparelhos ineficientes no mercado é uma bomba-relógio para o bolso do consumidor e para a política energética do País”, comenta o pesquisador do Idec.
Nível mínimo de eficiência energética de ares-condicionados em 10 países
REFRIGERADORES: GASTO MUITO VARIÁVEL
O índice de eficiência energética funciona de maneira diferente para refrigeradores – ele é mais baixo quanto mais eficiente o eletrodoméstico –, mas a situação, na prática, é a mesma. No modelo avaliado (combinado frost-free), 98% dos aparelhos já estão na classificação A atual, e apenas três modelos seriam atingidos pela nova regra proposta pelo MME, isto é, deixariam de ser comercializados.
Apesar disso, as geladeiras brasileiras não estão tão bem quanto parecem. Se nos EUA o máximo de consumo verificado para um refrigerador dessa categoria é de 500 kWh/ano, e na Índia é de 700 kWh/ano, no Brasil, esse aparelho chega a consumir 1.100 kWh/ano – 120% a mais do que no primeiro país e 57% a mais do que no segundo.
Outro problema da classificação brasileira é que, ao contrário do observado nos EUA e na Índia, não há correlação tão direta entre o volume (em litros) do eletrodoméstico e o consumo de energia. Normalmente, o gasto de luz aumenta conforme a capacidade do aparelho, mas no Brasil essa relação nem sempre é direta, além de existir uma variação muito grande de consumo dentro de uma mesma faixa de classificação de eficiência energética.
Por exemplo, se compararmos vários refrigeradores conforme sua classificação, seu volume e seu gasto anual, essa diferença fica mais visível, como mostra a tabela abaixo.
Os refrigeradores 1 e 2 são de classe A, mais eficientes, e têm um consumo bastante diferente conforme o volume, o que ocorre também com os aparelhos 3 e 4, menos eficientes (nível C). Se o consumidor optar por comprar o aparelho 2, o maior deles e com índice de eficiência melhor que o do refrigerador 4, um pouco menor, gastará R$ 130 a mais no ano, caso a tarifa não varie. Assim, o gasto aumentaria em 22% de um aparelho C para um A. A comparação na mesma classe de eficiência também mostra a distorção da atual classificação: o refrigerador 2 é 118,2% maior do que o 1 em volume, mas gasta 246,3% a mais do que ele.
BAIXA TRANSPARÊNCIA NA CONSULTA
O Idec participou da consulta pública sobre os novos níveis de eficiência energética para refrigeradores e aparelhos de ar-condicionado. Além de destacar que as mudanças eram pouco ambiciosas, o Instituto criticou a falta de transparência pa- ra a definição dos novos parâmetros propostos.
Junto a outras organizações, o Idec solicitou a divulgação dos estudos técnicos que serviram de base para a proposta em discussão, apresentada pelo Comitê Gestor de Indicadores de Eficiência Energética (CGIEE), do MME, mas não obteve retorno.
A reportagem questionou a Eletrobras, que subsidiou a consulta pública com um relatório técnico, por que não foram estabelecidas metas mais ousadas de eficiência energética para esses aparelhos. Segundo Marcel da Costa Siqueira, gerente do Programa Nacional de Conservação de Energia (Procel), da Eletrobras, “as recomendações são elaboradas pela comissão técnica [do Procel] e posteriormente submetidas ao CGIEE, que define o programa de metas. A Eletrobras coordena a Comissão Técnica de Refrigeradores e Congeladores, mas não é membro votante no CGIEE.”
O CGIEE não tem ninguém que represente os consumidores há algum tempo.
A ETIQUETA PODE MELHORAR
Já conhecida do consumidor, a etiqueta de eficiência energética definida pelo Programa Brasileiro de Etiquetagem, do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), tem entre suas principais atribuições orientar o consumidor na hora da compra.
Ao indicar uma nota ao aparelho em relação a seu gasto de energia, o objetivo é incentivar a escolha de modelos mais eficientes e, assim, economizar na conta de luz. De quebra, a ideia é que seja também um estímulo à competitividade no mercado, privilegiando os produtos mais eficientes.
O modelo brasileiro, porém, poderia ser aprimorado, destacando mais o consumo em quilowatt-hora (kWh) dos aparelhos, além de sua nota. Esse dado aparece em kWh/mês, abaixo das barras coloridas, mas poucas pessoas reparam nisso. O resultado é que o consumidor pode comprar o produto mais eficiente, mas não necessariamente o que gasta menos. Por isso, as etiquetas utilizadas na União Europeia destacam bastante o consumo do aparelho (em kWh/ano).
INOVAÇÃO INEVITÁVEL
Em um futuro não muito distante, os aparelhos de ar-condi- cionado e as geladeiras terão de passar por inovação tecnológica para atender às exigências do Protocolo de Montreal (1989), tratado internacional para proteção da camada de ozônio, do qual o Brasil é signatário.
A última versão do protocolo prevê o controle dos gases hidrofluorcarbonos (HFC), que não causam danos à atmosfera como seus antecessores (CFC e HCFC), mas provocam aquecimento global. Esses gases são usados na indústria de refrigeração e de ar-condicionado. Embora não tenha relação com o consumo de energia, essa inovação tecnológica tende a promover melhorias nos padrões de eficiência energética dos equipamentos.
Segundo Kamyla Borges, consultora do Instituto Clima e Sociedade (ICS), o tratado impõe um cronograma de redução gradual dos gases HFC, de 2029 até 2045, para países como o Brasil. Mas ela defende que a transição seja antecipada. “O Brasil tem a ganhar com isso.
Além da mitigação do efeito estufa, o País estaria alinhado com o que se vai produzir no resto do mundo”.