Alimentos
Marketing nada doce
Principais marcas de achocolatados investem em marketing direcionado ao público adolescente no Youtube.
Pesquisa do Idec mapeia estratégias publicitárias e perfil nutricional das principais marcas de achocolatados. Resultados mostram excesso de açúcar e investida sobre universo digital do público adolescente
Oque achocolatados, celebridades do Youtube e pautas políticas e sociais da atualidade têm em comum? Pode soar estranho, mas esses itens fazem parte das estratégias de marketing da indústria de alimentos e bebidas para se aproximar do público adolescente. O Idec analisou as campanhas oficiais das principais marcas de achocolatados em pó e achocolatados prontos para beber e constatou uma corrida dos anunciantes para adaptar os formatos tradicionais de publicidade a códigos do universo jovem, principal público consumidor desse tipo de produto.
A marca Ovomaltine, por exemplo, contratou três famosos youtubers – pessoas que se tornaram celebridades a partir de canais na plataforma de vídeos. Os youtubers Kéfera, Castanhari e Chris, que juntos somam mais de 24 milhões de seguidores, gravaram uma série de vídeos para a marca, facilitando o acesso da indústria aos seus jovens seguidores – os vídeos são postados inclusive nos canais pessoais dos youtubers.
Uma das celebridades contratadas pela marca Toddy foi a gamer Malena, especialista no popular jogo online Minecraft. O cenário dos vídeos é bem representativo do mundo adolescente: ela está sempre dentro do quarto, com o controle do videogame na mão. De um jeito informal, chega a estimular o público a jogar e comer ao mesmo tempo.
Para a nutricionista e pesquisadora do Idec Laís Amaral, vídeos desse tipo são uma nova forma de fazer publicidade. “Eles são disfarçados de entretenimento, mas estão divulgando um produto ultraprocessado e rico em açúcar”, destaca. “A publicidade tem enorme impacto nas escolhas alimentares das pessoas, principalmente de crianças e adolescentes, que ainda não têm a capacidade de julgamento totalmente desenvolvida”, completa.
A psicoterapeuta de adolescentes Ana Olmos, que foi membro do extinto Grupo de Trabalho de Classificação Indicativa de TV do Ministério da Justiça, acrescenta que essas peças publicitárias caracterizam o que se chama de comunicação inadvertida. “É forma de uma comunicação que passa como se não fosse publicidade, mas na verdade é, sim, uma proposta comercial”, explica.
PAUTAS ATUAIS
As estratégias não se limitam aos códigos das redes sociais e a celebridades da internet. Uma campanha publicitária do Nescau aproveita-se da recente ascensão de temas políticos e de empoderamento frente a opressões sociais, como o feminismo – muito disseminado hoje, sobretudo entre o público mais jovem. O vídeo, chamado Meninas fortes, tenta passar a ideia de que a mulher pode se livrar do machismo por meio da prática de esportes e, consequentemente, do consumo do achocolatado – “sinônimo” de esporte na narrativa vendida pela propaganda.
Para Olmos, essas peças publicitárias valem-se de três aspectos muito peculiares aos jovens: a vulnerabilidade frente às celebridades; a necessidade de per- tencimento a um grupo; e a transgressão da ordem. “Os vídeos que mexem com temas de identidade remetem a pertencimento a grupos. E o desejo dos adolescentes é pertencer e ser considerado igual”, destaca.
Ao mesmo tempo, explica a psicoterapeuta, o adolescente tende a desafiar o estabelecido, e o youtuber costuma aparecer como uma figura que cumpre esse papel. “Além disso, quando os vídeos mencionam questões de etnia ou gêne- ro, mesmo que sutilmente, isso é usado para capturar a rebeldia do adolescen- te”, analisa.
COMO FOI FEITA A PESQUISA?
A pesquisa avaliou três marcas de achocolatado em pó – Nescau, Ovomaltine e Toddy – que são as mais vendidas no varejo, de acordo com a Revista Supermercado Moderno, e dois achocolatado líquido: Nescau-Shake e Toddy-Shake, também líderes de venda segundo a mesma fonte. A marca Ovomaltine não vende bebida achocolatada pronta. Além disso, foram considerados apenas os produtos com estratégicas mercadológicas voltadas a adolescentes.
Os produtos foram avaliados dos pontos de vista publicitário e nutricional. As propagandas analisadas são campanhas oficiais da marca, todas veiculadas pelo Youtube e acessadas em maio de 2017.
Além disso, a pesquisa comparou o teor de açúcar indicado na tabela nutricional dos produtos com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Panamericana de Saúde (Opas).
AÇÚCAR DEMAIS
A pesquisa analisou também o perfil nutricional dos achocolatados e detectou um dado alarmante: todos possuem excesso de açúcar, em proporções que excedem de quatro a nove vezes o limite estabelecido pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).
Para se ter uma ideia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que, para uma dieta média de 2.000 calorias, o máximo de açúcar a ser consumido em um dia são 25 gramas. Mas apenas duas colheres de sopa de achocolatado em pó Toddy, por exemplo, contêm quase toda a cota diária: 18 g.
Na prática, o teor de açúcar dos produtos avaliados é semelhante – e proporcionalmente até maior, em alguns casos – ao de refrigerantes. Por exemplo: enquanto um copo de 200 mL de refrigerante tem cerca de 20 g de açúcar, a mesma quantidade de bebida preparada com o achocolatado Nescau, seguindo a indicação do fabricante, tem 22,5 g (veja o comparativo na página seguinte).
Apesar disso, de acordo com a nutricionista do Idec, o refrigerante já é percebido como um produto artificial, industrializado, enquanto o achocolatado é associado ao consumo de leite, que é recomendado. “Porém, é importante dissociar um alimento saudável, o leite, de um ultraprocessado, o achocolatado”, diz Amaral.
O TEOR DE AÇÚCAR DOS ACHOCOLATADOS É SEMELHANTE AO DE REFRIGERANTES
Para a nutricionista Clarissa Fujiwara, que atende adolescentes obesos no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, essa diferença de percepção se deve às estratégias de marketing da indústria de alimentos. “Quando se vê uma embalagem de um achocolatado, lê-se que ele é fonte de vitaminas, cálcio, ferro. Isso passa a ideia de que é um alimento que vai trazer benefício [à saúde]”. Ela aponta ainda que a indústria camufla a comunicação sobre o excesso de açúcar, dizendo que se trata de uma “fonte de energia”. “Mas é uma energia em demasia. E não é a partir do açúcar que devemos fornecer combustível a um adolescente, mas sobretudo de cereais, tubérculos [como batata], frutas e pães”, completa.
SAÚDE EM JOGO
O consumo excessivo de açúcar é um dos fatores que contribuem para o excesso de peso, problema que já afeta um em cada quatro adolescentes brasileiros, segundo dados de 2009 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse cenário inclui também as consequências da obesidade: 15% da população nessa faixa etária têm pré-hipertensão, e 10% já apresentam pressão alta instalada.
O que torna esses números ainda mais preocupantes é o fato de o achocolatado em pó estar intimamente atrelado ao consumo de leite, alimento recomendado para os jovens em função do seu alto teor de cálcio, conforme explica Fujiwara. “O leite é um alimento que incentivamos no dia a dia do adolescente, pois é nessa fase da vida que se forma o pico de densidade óssea”, aponta.
Considerando essa importância, a nutricionista do HC recomenda diminuir gradualmente a quantidade de achocolatado misturado ao leite, caso não haja aceitação do leite puro. “Outra opção é tentar substituir por cacau em pó ou bater o leite com frutas”, completa.
O QUE DIZ A INDÚSTRIA
O Idec comunicou os resultados da pesquisa aos três fabricantes dos achocolatados analisados. Porém, apenas a Nestlé, detentora da marca Nescau, respondeu até o fechamento desta edição.
A empresa disse que a campanha Meninas fortes destaca a “importância do esporte na conscientização social e como ferramenta para o desenvolvimento de meninas para os desa- fios da vida adulta”.
Em relação à avaliação nutricional, a Nestlé ressaltou que incluiu, em todas as embalagens do Nescau 3.0, com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), uma recomendação de preparo com uma porção menor, com 14 g (em vez de 20 g) do achocolatado.
Porém, o Idec pondera que o texto sugere a redução da porção para crianças a partir de 3 anos e não para adolescentes, alvos da pesquisa. Além disso, tal informação aparece no rótulo juntamente à indicação de preparo de duas colheres de sopa de Nescau (equivalentes a 20g) – mesma porção apresentada na tabela nutricional, como preconizado pela Anvisa –, o que pode confundir o consumidor.
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