De criança para criança
Empresas aproveitam sucesso dos youtubers mirins – meninas e meninos que estrelam canais na plataforma de vídeo – para promover suas marcas e produtos entre o público infantil
Talvez você nunca tenha ouvido falar dos chamados youtubers mirins – crianças que têm canais de sucesso no Youtube, plataforma de vídeos do Google –, mas eles são um verdadeiro fenômeno. Um dos maiores canais da categoria no Brasil tem mais de dois milhões de inscritos; seu vídeo mais bem sucedido foi assistido por 12 milhões de pessoas. A menina que estrela os vídeos tem apenas 10 anos de idade.
Com um público cativo, os miniastros brincam em frente às câmeras, encenam histórias, mostram sua festa de aniversário e sua rotina. Os vídeos normalmente são gravados em casa e dão a quem assiste a sensação de intimidade, de modo que os pequenos espectadores consideram os youtubers seus verdadeiros amigos. Mas nem tudo é tão inocente. Em meio à exposição do cotidiano da criança, os vídeos são recheados de produtos e marcas. Na descrição de um canal famoso, por exemplo, a menina já diz quais são as marcas de bonecas e de outros brinquedos de que mais gosta. Pode parecer uma preferência, mas ela está fazendo publicidade.
Aproveitando o sucesso dos pequenos youtubers, empresas de diversos segmentos enviam "presentes" para as crianças divulgarem em seus canais. Os mais famosos já têm uma programação mensal destinada a apresentar os artigos que ganharam. Em alguns casos, a criança faz um vídeo exclusivo abrindo a caixa de um brinquedo ou eletrônico novo em frente às câmeras (o chamado unboxing), ou um review, uma espécie de resenha, em que avalia as características e funcionalidades do produto. "É muito desleal usar crianças para vender para outras crianças", critica Claudia Almeida, advogada do Idec. "Mais do que produtos, muitos youtubers mirins vendem um estilo de vida consumista que poderá trazer consequências para o resto da vida das crianças que assistem", complementa.
PUBLICIDADE DISFARÇADA
Para Almeida, utilizar os canais do Youtube é muito mais barato e mais eficiente para as empresas do que a publicidade tradicional. "Se um comercial de 30 segundos na televisão já deixa as crianças hipnotizadas, o que dizer de um brinquedo sendo demonstrado por mais de 10 minutos, como ocorre em muitos vídeos? A criança que assiste desenvolve uma necessidade de ter aquele produto, de se divertir como aquela outra criança. É uma forma de publicidade muito mais potente", afirma. Nos comentários, é possível ter uma ideia do impacto desses vídeos sobre as crianças que os assistem. Elas dizem coisas como: "Eu amo seus vídeos" e "Você é linda" até "Onde você comprou? Quero muito um!".
Não é novidade que a publicidade potencializa o consumo entre os adultos e afeta ainda mais as crianças. Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, aponta que, segundo pesquisas, até os oito anos de idade os pequenos não conseguem distinguir o que é conteúdo e o que é publicidade. Quando a publicidade é "maquiada", mesmo crianças maiores não conseguem percebê-la. Um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa da Relação Infância, Adolescência e Mídia, da Universidade Federal do Ceará, constatou que crianças de 9 a 11 anos têm dificuldade em identificar merchandising na TV.
No caso dos vídeos do Youtube e de mídias sociais em geral, esse disfarce da publicidade é constante. Mesmo quando se trata de conteúdo adulto, é difícil identificar quando a pessoa está citando uma marca aleatoriamente e quando está sendo paga ou tem algum tipo de acordocom a empresa. "O conteúdo da internet é muito mais camuflado. Os vídeos [dos youtubers mirins] parecem só entretenimento, mas na verdade são publicidade", aponta Karageorgiadis. A reportagem questionou o Conselho Nacional de Autorregulação Publicitária (Conar) sobre essa prática, mas o órgão não quis comentar o assunto.
O marketing é tão dissimulado que não engana só os pequenos, mas também os pais. Muitos não percebem o problema nesses canais infantis e acham que, no Youtube, seus filhos estão mais seguros do que vendo TV. Mas na avaliação de Vanessa Anacleto, cofundadora do Movimento Infância Livre de Consumismo, apesar da possibilidade de restringir o acesso a conteúdos inadequados (como sexo e violência), o controle sobre a publicidade na plataforma é mais limitado. Para ela, que é mãe de um menino de 8 anos, não basta cobrar só dos pais; as empresas também devem ser responsabilizadas, pois "assediam as famílias das crianças que mantêm canais de vídeo com presentes".
DE QUEM É A RESPONSABILIDADE?
O Instituto Alana concorda que as empresas devem ser responsabilizadas. No início do ano, a ONG denunciou ao Ministério Público Federal (MPF) 15 marcas por ações de marketing com youtubers mirins, entre elas, o McDonald´s, a BIC e o SBT. Em junho, as Procuradorias Gerais da República do Rio de Janeiro e de São Paulo instauraram inquéritos para investigar o caso. O MPF ainda está ouvindo as empresas; se avaliar que elas agiram de forma ilegal, o órgão pode elaborar um termo de ajustamento de conduta, exigindo que abandonem essa prática, ou entrar com uma ação civil pública, por exemplo. A denúncia do Instituto Alana baseia-se em uma extensa legislação que considera abusiva toda forma de publicidade direcionada ao público infantil no Brasil – como a previsão de prioridade absoluta aos direitos da criança na Constituição Federal; o artigo 36 do Código de Defesa do Consumidor, que classifica como abusiva a publicidade que se aproveita da deficiência de julgamento e experiência da criança; e o Marco Civil da Primeira Infância, que garante a proteção dos pequenos contra a pressão consumista. "As empresas agem na internet como se fosse uma terra sem lei, mas as normas que proíbem a publicidade infantil valem também para a rede. Falta apenas que sejam cumpridas pelo mercado", ressalta Karageorgiadis. De acordo com Almeida, tanto as empresas que enviam produtos quanto o próprio Youtube agem de forma ilegal em relação à publicidade infantil nos canais. "As leis não se restringem aos comerciais veiculados antes dos vídeos, mas também ao seu conteúdo. O Youtube precisa reconhecer que a publicidade infantil é ilegal e coibi-la na plataforma, assim como faria com qualquer outro conteúdo ilícito", declara. Mas não é isso o que acontece. Com a repercussão da investigação do MPF na imprensa, o Youtube defendeu-se dizendo que orienta que os canais sejam criados e gerenciados apenas por adultos. Ao mesmo tempo, porém, a empresa incentiva os youtubers mirins que fazem sucesso na plataforma, enviando a eles placas de agradecimento quando seus canais atingem marcas significativas de seguidores.
Fato é que, longe de ser mera brincadeira de criança, muitos canais de vídeos infantis tornaram-se grandes negócios. Aos adultos, cabe ficar atento a essas novas estratégias e, caso percebam ações publicitárias, denunciá-las aos órgãos competentes, como o MPF e o Procon. O Youtube e outras plataformas da internet não são um ambiente livre de riscos para as crianças, inclusive em relação à publicidade. Veja, a seguir, algumas dicas para minimizar a exposição dos pequenos na rede: - Acompanhe de perto o que a criança vê ou faz na internet. Coloque o computador em ambientes de uso coletivo da casa (na sala, por exemplo) e evite que elas usem celular ou tablet sem supervisão. - Avalie se o conteúdo a que seu filho assiste ou acessa é apropriado ou se há propagandas disfarçadas de entretenimento. - Oriente a criança a respeito da publicidade contida nos vídeos, sites e aplicativos que ela acessa. - Fique atento também aos jogos e aplicativos que os pequenos estão usando. Informe-se sobre os dados solicitados para jogar, que tipo de prêmio ganham etc. - Instale um bloqueador de publicidade para evitar que as empresas de marketing rastreiem as atividades das crianças na web. Fontes: Claudia Almeida, advogada do Idec; e Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana