Mais rigor, por favor
Monitoramento constata persistência de infrações à legislação protetora da amamentação no Brasil. Lei de 2006 finalmente foi regulamentada, mas, para ser cumprida, precisa de fiscalização
O leite materno é o alimento mais completo e ideal para o bebê. A amamentação também faz bem para a saúde da mãe, não tem custos, não gera lixo. Apesar de todos os benefícios atestados cientificamente e reconhecidos pela população, ainda é difícil para as brasileiras exercer plenamente esse direito. Enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda o aleitamento materno exclusivo (sem complementação com outros leites ou outros alimentos) nos primeiros seis meses do bebê, no Brasil a mediana é de apenas 54 dias, segundo dados de 2008 – os mais recentes disponíveis.
São muitos os fatores, inclusive socioculturais, que influenciam no desmame precoce. Um desses responsáveis é a oferta ostensiva de produtos que interferem na amamentação, como leites artificiais, papinhas, mamadeiras e chupetas. Para evitar que os interesses comerciais de promover esses produtos concorram com o leite materno, o Brasil tem um conjunto de regras de proteção à amamentação – a chamada NBCAL, composta por resoluções, portarias e pela Lei Federal 11.265/2006. Contudo, essas normas têm sido sistematicamente desrespeitadas.
Em apenas quatro meses de 2015, foram flagradas 227 infrações à legislação de proteção da amamentação no país. Os dados são do monitoramento realizado pela Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar (Ibfan Brasil) em parceria com o Idec, entre abril e julho do ano passado, em 18 cidades de 10 estados brasileiros.
São diversos os tipos de infrações: promoção comercial indevida de produtos em pontos de venda, como supermercados, farmácias e lojas de artigos infantis; em sites e nas redes sociais; rotulagem inadequada desses artigos; e entrega de brindes a profissionais de saúde. No total, 53 empresas, entre fabricantes e comerciantes, estavam envolvidas nas irregularidades. Todas elas foram notificadas, mas apenas 19 deram alguma resposta.
A quantidade de transgressões aumentou significativamente em comparação com o ano anterior, quando o monitoramento nacional identificou 114 infrações. Embora a pesquisa de 2014 tenha sido menos abrangente – envolveu 10 cidades de cinco estados –, o alto número de irregularidades aponta a persistência do desrespeito à legislação.
"O Brasil tem uma das normas mais avançadas do mundo, mas ela é sistematicamente descumprida. Muito disso se deve ao fato de que as empresas infratoras não são punidas. O Idec e a Ibfan notificam os órgãos reguladores todos os anos sobre as irregularidades identificadas, mas nenhuma sanção é aplicada", destaca Ana Paula Bortoletto, nutricionista e pesquisadora do Instituto.
REGULAMENTADA, FINALMENTE
A boa notícia é que o cenário de descumprimento e falta de punição pode mudar. Em novembro passado, foi finalmente publicado um decreto presidencial (Decreto nº 8.552/2015) que regulamenta a lei federal sobre o tema.
Embora a lei já estivesse em vigor há anos, a falta de regulamentação dificultava sua efetividade, pois alguns dispositivos da norma não eram autoaplicáveis. "O regulamento permite a aplicação completa e efetiva da legislação, incluindo as sanções. Os artigos que poderiam suscitar dúvidas quanto ao seu cumprimento agora foram esclarecidos, caindo por terra a justificativa de algumas empresas que alegavam que não era necessário cumpri-los", diz Fabiana Müller, coordenadora nacional da Ibfan Brasil.
As principais mudanças trazidas pela regulamentação estão relacionadas às frases de advertência de promoção comercial e de rotulagem, que agora especifica o tamanho da letra, localização e destaque desses alertas. Os rótulos de alimentos e outros produtos dirigidos a crianças de até dois anos não poderão utilizar imagens ou textos que induzam ao uso, como "baby", "ideal para o seu bebê", bem como personagens infantis. Os fornecedores terão um ano para se adequar às novas regras de rotulagem – até 4 de novembro de 2016.
A regulamentação também proíbe qualquer ação promocional, como descontos, brindes e exposições especiais no supermercado de três categorias de produtos: fórmulas para recém-nascidos de alto risco; fórmulas infantis para bebês de até seis meses e fórmulas de seguimento para crianças a partir do sexto mês (alimentos artificiais que substituem o leite materno); e também de mamadeiras, bicos e chupetas.
O decreto define ainda que a fiscalização da legislação cabe às vigilâncias sanitárias e aos órgãos públicos de defesa do consumidor em nível municipal, estadual e federal. Em caso de descumprimento, as empresas podem sofrer interdição ou pagar multa de até R$ 1,5 milhão. "A regulamentação finalmente saiu. Agora é fundamental que os governantes deem continuidade a esse novo processo, garantindo a revisão dos instrumentos que compõem a NBCAL e a capacitação dos profissionais de saúde e de vigilância sanitária para a correta fiscalização da implementação da lei", aponta Müller.
OUTROS DESAFIOS
Apesar do importante avanço trazido pela regulamentação da lei federal, as empresas ainda têm algumas brechas para promover produtos que, embora também possam atrapalhar a amamentação, não são coibidos pela legislação. Um exemplo é o marketing de compostos lácteos, que, diferentemente de fórmulas, não são proibidos.
As fórmulas infantis e de seguimento são alimentos artificiais que substituem o leite materno para bebês de até seis meses, e entre seis meses e um ano, respectivamente. Já o composto lácteo é dirigido a crianças maiores de um ano. No entanto, para os pais, é difícil distinguir um de outro: parece tudo leite em pó. "As empresas se utilizam dessas brechas na lei para fazer propaganda de produtos que não substituem o leite materno e não são recomendados como parte de uma alimentação adequada e saudável", destaca a nutricionista do Idec. "A alimentação infantil, após os seis meses de idade, deve ser composta por alimentos in natural ou minimamente processados, não por esses produtos", completa Bortoletto.
OS MÉDICOS SÃO O ALVO
Outro grande desafio para impedir a "concorrência desleal" de produtos que interferem na amamentação é a atuação das empresas junto a profissionais de saúde. De acordo com a médica pediatra Ana Júlia Colameo, membro da Ibfan Brasil, os profissionais da área ficam expostos ao marketing das empresas desde a faculdade até quando já atuam como especialistas, por meio de visitas sistemáticas, almoços, brindes, prêmios e outras formas de "sedução". "O presenteio constante e progressivo, sempre acompanhado da divulgação de seus produtos, vai criando na mente do profissional a ideia de uma 'boa empresa', o que leva automaticamente ao conceito de 'bons produtos'", afirma.
Para Fabiana Müller, a influência desse tipo de marketing é grande, mas sutil. "Muitos profissionais de saúde acreditam estar imunes às estratégias da indústria, o que é um equívoco", alerta. Colameo concorda e cita um caso em que houve um intenso bombardeio das empresas sobre os pediatras para "alertar" sobre refluxo gastroesofagiano em bebês, com distribuição de panfletos e material de "atualização" sobre o assunto, editados pela indústria de alimentos, poucos meses antes do lançamento de uma fórmula láctea "antirrrefluxo". "Essa campanha publicitária mudou o conceito de 'regurgitação' – um evento normal que ocorre na grande maioria dos lactentes e que se resolve quando eles começam a sentar ou a ficar em pé e a andar – para 'refluxo', um defeito na válvula entre o esôfago e estômago que merece cuidados e tratamento", relata a pediatra.
A coordenadora nacional da Ibfan destaca que o marketing das empresas voltado a médicos e outros profissionais de saúde configura um claro conflito de interesses – e o custo dele será incluído no preço final dos produtos, pago pelo consumidor. Apesar disso, é muito difícil fiscalizar essa prática, pois ela se dá num ambiente fechado e particular (os consultórios). Por isso, a estratégia é que a sociedade se una e lute contra a interferência e os interesses das empresas. "É importante que mães e pais se engajem na luta contra a publicidade infantil, exigindo a regulação do Estado para impedir todo tipo de propaganda de produtos para as crianças, inclusive o marketing voltado aos profissionais de saúde", finaliza Colameo.
• 1981: aprovado o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, assinado pelo Brasil, que impulsiona a criação de normas sobre o tema em vários países.
• 1988: é publicada a primeira versão da Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para Lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Protetores de Mamilos (NBCAL).
• 1992: a NBCAL é revisada.
• 2001-2002: nova atualização da Norma.
• 2006: a NBCAL é sancionada na forma de lei (Lei Federal nº 11.265), mas alguns dispositivos dependiam de regulamentação para aplicação efetiva.
• 2009: Grupo Técnico coordenado pela Anvisa discute a minuta do decreto de regulamentação da lei federal. Documento passa por diversos ministérios.
• 2015: em 3 de novembro, é assinado o Decreto nº 8.552/2015, que regulamenta a lei federal.
• 2016: um ano depois, em novembro de 2016, entram em vigor as regras previstas na regulamentação; empresas infratoras ficarão sujeitas a sanções, como interdição e multa de até R$ 1,5 milhão.
RESENHA
FILME DENUNCIA LOBBY DO LEITE ARTIFICIAL
Por Ana Paula Bortoletto, nutricionista e pesquisadora do Idec
Baseado em fatos reais, o filme Tigers conta a história de Ayan, um paquistanês que consegue emprego na Nestlé para vender fórmulas artificiais que substituem o leite materno. Ele fica maravilhado com os benefícios que a empresa oferece, mas seu encantamento vai por água abaixo ao descobrir os problemas de saúde que o produto que promove causa em bebês: desnutrição, diarreia e mortes.
Com o apoio de sua família e da Ibfan Internacional (representada no filme pela ONG The Hub), Ayan decide denunciar as estratégias agressivas e ilegais que a empresa utiliza para promover seus produtos em um país pobre e sem acesso universal à água tratada, passando a ser perseguido pelos antigos empregadores.
Mesmo para quem já conhece as estratégias das multinacionais para promover alimentos ultraprocessados, as denúncias são chocantes. Ao mesmo tempo, é emocionante ver como uma pessoa corajosa conseguiu afetar a gigante e poderosa empresa, que estimula a substituição do alimento mais completo que existe: o leite materno.
Exibido na 39ª Mostra de Cinema de São Paulo em 2015, Tigers infelizmente não chegou ao circuito comercial no Brasil. O filme relata uma história que precisa ser conhecida por todos, para que não continue se repetindo mundo afora.
TIGERS
ANO: 2014 / DIREÇÃO: DANIS TANOVIC / DURAÇÃO: 90 MINUTOS