Ciclovias: o desafio de expandir
Cidades brasileiras estão investindo na ampliação da estrutura viária para bicicletas, mas ainda falham na elaboração de projetos eficientes e de integração com outros meios de transporte
A proximidade do Dia Mundial sem Carro, em 22 de setembro, reacende o debate sobre as alternativas ao transporte individual motorizado e posiciona os ciclistas, principalmente, na linha de frente dessa discussão que envolve congestionamentos, poluição, transporte público ineficiente e aquecimento global. Timidamente, o Brasil investe em infraestrutura cicloviária: prefeituras, principalmente de capitais, gastam tinta para pintar ciclovias e ciclofaixas, mas pecam na elaboração de projetos eficientes de integração dos modais de transporte.
O desafio brasileiro é monumental. O país conta com pouco mais de 1.500 quilômetros (km) de ciclovias, menos de 1% de toda a malha rodoviária. Segundo levantamento da União de Ciclistas do Brasil (UCB), Brasília é a cidade que tem maior extensão de ciclovias, contabilizando 400 km. Em seguida estão Rio de Janeiro, com 374 km, e São Paulo, com 290. A Prefeitura de São Paulo pretende, entretanto, assumir a liderança e tem a meta de atingir, até o final de 2016, 460 km exclusivos para as bikes.
"É visível o aumento da quantidade de usuários de bicicleta nas grandes cidades, pois muitas pessoas não suportam mais esse modelo que prende os próprios motoristas e o transporte coletivo no trânsito", avalia André Soares, presidente da UCB. Ele informa que, por pressão do cicloativismo, foi aprovada em 2012 a Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587), cuja principal diretriz é estabelecer a "prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual motorizado".
A lei também determina que todas as cidades a partir de 20 mil habitantes elaborem um plano de mobilidade urbana integrada e compatível com o plano diretor municipal – antes, a determinação era para aquelas a partir de 500 mil habitantes. "É importante alertar as cidades pequenas a evitar o erro das maiores", diz Soares. "Nelas, os problemas são menos complexos e é possível acolher a bicicleta sem tantos investimentos, sendo mais eficazes as medidas educativas."
Mas é preciso também mudar mentalidades. "O atual modelo de desenvolvimento urbano não serve nem para quem anda de automóvel", afirma Thiago Benicchio, gerente de Transportes Ativos do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). Para ele, a transformação não ocorrerá de imediato: "Há um século de construção do imaginário e de tecnologia em favor do carro".
Segundo a pesquisadora do Idec Renata Amaral, vencer o embate contra o transporte individual motorizado requer o engajamento da sociedade civil e do poder público. "É preciso transformar todo um paradigma de modelo de desenvolvimento", afirma. Ela avalia que esse esforço é recompensado. "A bicicleta pode gerar economia financeira, ganhos para a saúde individual e para toda a sociedade, com a redução da emissão de gases de efeito estufa e o consequente controle do aquecimento global", lembra.
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A frota total de bicicletas no Brasil é impressionante: são 70 milhões, segundo a associação de fabricantes do setor (Abraciclo). Mas enquanto muitas bikes estão encostadas, os veículos tomam as ruas. São 89 milhões, entre carros e motos, de acordo com dados do Departamento Nacional de Trânsito, de julho deste ano. "O problema não é o número de carros, mas o número de viagens de automóvel", pondera Benicchio.
Levantamento realizado pela UCB aponta que a principal dificuldade enfrentada pelos ciclistas é a falta de ciclovias (51%), seguida do trânsito perigoso (41%), excesso de carros (40%) e desrespeito dos motoristas (31%). Esses perrengues são sentidos na pele pelo designer gráfico Bruno Cabral, de Goiânia (GO), que há sete anos adotou a bike como principal meio de transporte. Sua cidade, porém, só tem 5 km de ciclovias. "É um estresse constante. O trânsito é uma guerra e eu escolhi a arma mais fraca", diz. Cabral acredita que esse é o maior empecilho para mais pessoas aderirem à bicicleta: "Todo mundo acha legal, diz que tem vontade [de pedalar], mas não tem coragem de enfrentar o trânsito".
O perito em trânsito Antenor Pinheiro, membro da comissão executiva da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) na região Centro-Oeste, concorda que a violência no trânsito é uma barreira para os ciclistas. "O trânsito no Brasil mata 55 mil pessoas ao ano. Ainda somos muito violentos e estamos atrasados em relação a outros países", afirma.
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A construção de ciclovias isoladas está longe de ser a solução para os ciclistas e muito menos para melhoria do trânsito nas cidades. Thiago Benicchio, do ITDP, explica que uma política eficiente envolve também bicicletários, integração ao transporte público, sistema de bicicletas compartilhadas, redução da velocidade nas ruas, campanhas de conscientização e respeito aos ciclistas e, sobretudo, fiscalização. "No Brasil, temos uma cultura de educação associada à punição. Se não for assim, não resolve", afirma.
Apesar desses desafios, Benicchio pondera a crítica de que falta planejamento para as ciclovias. "Não há recurso público investido sem planejamento", assegura. O que acontece, segundo ele, são falhas de projeto, que ocorrem para incomodar o mínimo possível os motoristas. Em São Paulo, por exemplo, não foi retirada nenhuma faixa de rolamento de carros para dar lugar à ciclofaixa, apenas áreas de estacionamento foram usadas.
Outro empecilho, de acordo com o gerente do ITDP, é a falta de gente especializada no poder público. O presidente da UCB concorda. "Ainda não temos tradição, não há uma escola de infraestrutura cicloviária, como no exterior. Somente com persistência atingiremos essa condição", diz André Soares.
Antenor Pinheiro também minimiza a crítica de que as ciclovias estão sendo construídas apenas em áreas centrais, sem contemplar bairros mais afastados. "É uma estratégia começar do miolo para a periferia", afirma o perito em trânsito. Já para Soares, essa característica replica o modelo adotado em outras políticas públicas, que também priorizam as classes mais altas. "O importante é que a infraestrutura instalada se consolide. Com isso, mais pessoas pedalando significará mais demanda por quantidade e qualidade [das ciclovias]."
O fundamental, segundo todos os especialistas, é uma política continuada em prol das bikes. "É preciso que tudo isso seja executado como política de Estado, com metas sendo perseguidas por sucessivas administrações públicas, ao invés da atual tradição de políticas de mandato", aponta o presidente da UCB. Pinheiro, por sua vez, lembra que na América Latina há dezenas de cidades muito à frente das brasileiras. "Bogotá tem 420 km de ciclovias e mais 300 km projetados que serão executados independentemente de quem for o próximo prefeito", exemplifica.