Tratamento dificultado
Apesar de ilegal, planos de saúde ainda negam procedimentos e medicamentos contra o câncer quando não previstos na lista de coberturas obrigatórias fixada pela ANS. Acionar a Justiça é saída para o consumidor
Enfrentar um câncer não é fácil. Agora imagine lutar contra a doença e ainda ter de brigar com o plano de saúde para conseguir acesso ao tratamento. Foi o que aconteceu com a arquiteta e associada do Idec Edith Pereira*, 47 anos, que recebeu três negativas de sua operadora durante o tratamento de um câncer de mama. "Toda vez que precisava de um novo medicamento, o hospital me ligava para dizer, grosseiramente, que meu seguro saúde não iria pagá-lo. Eu me sentia torturada, mas não tinha forças para pesquisar quais eram os meus direitos", relata Pereira, que descobriu a doença em setembro de 2013.
A situação enfrentada pela associada, infelizmente, é comum. Segundo o oncologista Rafael Kaliks, diretor científico do Instituto Oncoguia, na prática, os procedimentos que não constam da lista de coberturas obrigatórias fixada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) são recusados pelas operadoras durante o tratamento do câncer. A negativa, no entanto, é ilegal. "A Lei de Planos de Saúde [lei nº 9.656/1998] garante a cobertura de todas as doenças listadas pela Organização Mundial de Saúde. O Código de Defesa do Consumidor também protege contra negativas de cobertura. Assim, qualquer regulamentação que exclua procedimentos necessários ao tratamento dessas enfermidades é ilícita", explica Joana Cruz, advogada do Idec.
Em outras palavras, mesmo o que não está no rol de coberturas obrigatórias da ANS deve ser custeado pelas operadoras de planos de saúde. "O rol é exemplificativo, não taxativo. Se houver indicação de um profissional de saúde, o plano tem de cobrir", ressalta Renata Vilhena Silva, advogada especialista em direito à saúde.
A Justiça tem se posicionado a favor do consumidor nesses casos. O Tribunal de Justiça (TJ-SP), inclusive, tem uma Súmula (no 102) que diz que: "havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol de procedimentos da ANS".
Entre 2009 e 2010, o TJ-SP proferiu 782 decisões relacionadas à exclusão de cobertura de planos de saúde, das quais 88% foram favoráveis aos usuários. Em 36,5% dos casos analisados, as negativas foram para tratamentos contra o câncer, principalmente para quimioterapia e radioterapia (33%). Os dados são de um estudo realizado por Mário Scheffer, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e membro do Conselho Diretor do Idec.
Segundo Scheffer, boa parte das ações judiciais analisadas em sua pesquisa eram relacionadas a medicamentos quimioterápicos orais, que agora têm cobertura obrigatória pelos planos. Desde janeiro de 2014, esses remédios foram incluídos no rol da ANS e, em maio, a lista passou a abarcar também os medicamentos para controle dos efeitos colaterais da quimioterapia. Apesar do avanço, foram incluídos apenas 37 medicamentos. A enzalutamida, indicada contra o câncer de próstata, por exemplo, ficou de fora. Além disso, agora, na nova atualização do rol proposta pela agência, um quimioterápico oral pode ser retirado da lista.
"O câncer é um problema de saúde pública nacional, por isso, a participação dos planos de saúde é muito importante. Mas, infelizmente, eles não querem assumir sua responsabilidade", avalia Scheffer. Ele sustenta que os planos "fogem" dos procedimentos mais caros e complexos, o que sobrecarrega o Sistema Único de Saúde (SUS), já que pessoas que têm plano privado acabam tendo de recorrer à rede pública.
NA JUSTIÇA
Apesar de o Judiciário se posicionar, em grande parte, a favor do consumidor quando há negativa de cobertura, Kaliks avalia que poucos pacientes recorrem a essa via. "De cada 100 casos recusados, apenas 15 vão parar na Justiça", calcula o oncologista.
No escritório da advogada Renata Silva, porém, 80% das ações envolvem tratamentos oncológicos. "Os casos mais comuns são de tratamentos para câncer de próstata [o mais frequente entre homens brasileiros, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer – Inca], linfoma e leucemia", informa Silva.
A assistente financeira Giselli Sencovici, de São Paulo, faz parte do grupo que teve de apelar à Justiça. Em agosto de 2014, quando seu pai foi internado às pressas para a retirada de um tumor maligno no cérebro, o plano de saúde barrou o uso de um neuronavegador solicitado pelo cirurgião – recurso utilizado para localizar lesões no interior do órgão com segurança e precisão. "O médico disse que sem o neuronavegador não faria a cirurgia, porque o risco de sequelas e até de morte era muito grande", conta. Começou, então, a luta. O juiz concedeu liminar obrigando o plano a autorizar o uso do equipamento em 24 horas. "O plano liberou nos 45 minutos do segundo tempo", lembra Sencovici.
Acionar a Justiça acaba sendo, muitas vezes, o caminho mais rápido para o consumidor em situações desse tipo, em que a negativa de cobertura representa risco iminente à sua saúde. "Entrar com uma ação judicial com pedido de liminar, de antecipação da tutela ou de deferimento de ação cautelar [que são espécies de decisões judiciais provisórias] é a melhor opção para obter uma solução rápida para o impasse", orienta Joana Cruz. A advogada do Idec também recomenda que o consumidor faça uma reclamação à ANS e ao Procon, para que o problema entre para os registros oficiais e a operadora possa vir a ser punida com sanções administrativas também.
As chances de sucesso em um pedido de decisão provisória para tratamento de saúde, no entanto, estão em risco no TJ-SP, que pretende implantar um núcleo de apoio técnico e mediação, com a participação das operadoras de planos de saúde e da ANS, para dar parecer técnico antes de o juiz avaliar o pedido do consumidor. Para evitar essa interferência indevida, o Idec está promovendo uma campanha sobre o tema. Veja mais informações na seção Idec em ação.
• Entre 2009 e 2010, 88% das decisões do TJ-SP relacionadas à exclusão de cobertura de planos de saúde foram favoráveis ao consumidor.
• Em 36,5% dos casos analisados pelo tribunal, as negativas foram para tratamentos contra o câncer.
• Desses, 33% eram pedidos de quimioterapia ou radioterapia.
Fonte: Mário Scheffer, professor da FMUSP
PROCEDIMENTOS MAIS NEGADOS
Entre os procedimentos utilizados no tratamento do câncer mais comumente negados pelos planos de saúde está a Radioterapia de Intensidade Modulada (IMRT), que utiliza alta dose de radiação no tumor, protegendo os tecidos saudáveis. A IMRT pode ser aplicada contra qualquer tipo de câncer, mas é fundamental no tratamento de tumores na cabeça e no pescoço, no cérebro, na próstata, no pulmão, de tumores ginecológicos e gastrointestinais. Segundo Eduardo Weltman, presidente da Sociedade Brasileira de Radioterapia, esse procedimento diminui a toxicidade do tratamento e aumenta a probabilidade de cura dos pacientes. "Os planos alegam que a IMRT não está no rol – ela foi incluída apenas para tumores avançados na cabeça e no pescoço. A recusa a esse recurso aumenta as sequelas e diminui a efetividade do tratamento", afirma Weltman.
As pacientes que lutam contra o câncer de mama – o mais comum em mulheres do mundo todo, segundo o Inca – também enfrentam muitas barreiras para conseguir realizar cirurgia de reconstrução do seio após a retirada do tumor. Em geral, os planos só liberam o procedimento para a mama doente. "Nessa cirurgia, a simetria é muito importante, mas os planos não autorizam o implante de silicone na outra mama", observa Vilmar Marques, presidente da Sociedade Brasileira de Mastologia – regional São Paulo. A cirurgia plástica reparadora dos seios é obrigatória também no SUS, de acordo com a Lei nº 9.797/1999.
Mulheres jovens também têm dificuldade para conseguir que os planos arquem com as despesas da coleta de óvulos, necessária porque a quimioterapia diminui a chance de ter filhos. Para Kaliks, do Oncoguia, após a aprovação dos medicamentos orais, esse é o novo desafio a ser superado. "As pacientes jovens precisam receber esse suporte", ele defende.
Os planos também costumam negar a cobertura de tratamentos off-label, ou seja, aqueles que não estão prescritos na bula. Por exemplo, o medicamento é indicado para câncer de intestino, mas em razão de estudos que comprovam sua eficácia para o de próstata, ele é receitado pelo médico para esse fim. "Os planos não autorizam nesse caso, mas quem vai para a Justiça ganha a causa", informa a advogada Renata Vilhena Silva.
O que os planos alegam
Veja, a seguir, as principais justificativas dos planos de saúde para não custearem medicamentos e procedimentos utilizados em tratamentos contra o câncer. Atenção: todas elas podem ser questionadas com base no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Planos de Saúde.
• O procedimento não consta do rol.
• O contrato tem cláusula que exclui a cobertura solicitada (geralmente, quando o contrato é antigo, ou seja, assinado antes de 1999).
• O plano é coletivo e, portanto, o CDC não se aplica.
• A doença é preexistente.
• O hospital onde o paciente foi atendido não é credenciado ao plano.
• Não concorda com o tratamento.
• O tratamento não foi indicado corretamente ou não condiz com a indicação da bula.
• O tratamento tem fins estéticos.
O rol de coberturas obrigatórias é atualizado a cada dois anos. Em junho, a ANS abriu consulta pública para a próxima revisão da lista, em 2016. Uma mudança proposta pela agência, no entanto, foi alvo de muitas críticas: a exclusão de um medicamento oncológico – o everolimus, quimioterápico oral indicado para câncer de mama com metástase, incluído no rol em 2014.
A justificativa da ANS foi que o medicamento não será mais utilizado no SUS para esse fim. A ideia de usar a lista do SUS como referência para os planos privados, no entanto, é questionável. "A saúde suplementar deveria fornecer os tratamentos do SUS e todos os outros necessário à manutenção da vida e da saúde do consumidor. Entretanto, o rol da ANS já não contempla, há tempos, muitos procedimentos que são realizados pelo SUS, como transplantes de coração, pulmão, fígado, entre outros. Se for para se basear no sistema público, que seja para incluir novos tratamentos e não excluí-los", defende Joana Cruz, advogada do Idec.
O Instituto vai se posicionar oficialmente contra essa exclusão quando enviar contribuições à consulta pública da ANS. O Idec também vai reiterar que o rol deve ser exemplificativo. A consulta pública encerra em 18 de agosto.