Até tu, Judiciário?
MEDIAÇÃO PARA QUEM?
Outra notícia de impacto para consumidores de planos de saúde é a parceria entre o TJ-SP, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e representantes de operadoras de planos de saúde para criar o Núcleo de Apoio Técnico e Mediação (NAT). O objetivo do núcleo é fazer conciliações em até 24 horas e oferecer pareceres técnicos sobre os procedimentos solicitados por consumidores e até mesmo sobre a urgência dos casos quando um consumidor entrar com pedido de liminar contra uma operadora de plano de saúde para obter um tratamento.
O que chama a atenção, primeiro, é a composição desse núcleo: apenas membros do Judiciário, da ANS e representantes das operadoras de saúde – como a Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge) e a Federação Nacional de Saúde Suplementar (Fenasaúde). Ou seja, não haverá participação de entidades de defesa do consumidor, o que levanta suspeitas de especialistas ouvidos pelo Idec.
O presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Bezerra, lembra que tentativas de aproximar a sociedade civil do judiciário não são novidade e, a princípio, nem um problema. Mas alerta que as operadoras são, na verdade, representantes do sistema econômico. "Qualquer ação do Estado que vá interferir nas relações de consumo e que ouça apenas uma parte gera preocupação em relação ao outro lado – no caso, o lado mais fraco".
Mais contundente ainda é a informação de que a reforma da sala do TJ onde funcionará o núcleo, no Fórum João Mendes, em São Paulo, foi financiada pela Abramge e pela Fenasaúde, no valor de R$ 70 mil. Renata Vilhena é taxativa: "é um lobby das empresas de planos de saúde junto aos tribunais de Justiça a pretexto de diminuir a litigiosidade nas questões de saúde".
Dentro do núcleo, as operadoras ainda poderão abastecer os juízes com "informações técnicas" para auxiliar decisões em caráter de urgência. Para Daniela Trettel, fica claro o aumento do poder de influência desses grupos em relação aos juízes, além de acesso privilegiado para levar o seu lado da história. A Revista do Idec questionou a Fenasaúde e a Abramge quanto a eventual conflito de interesses no custeio da reforma da sala do Tribunal, mas não houve resposta até o fechamento desta edição. Essa pergunta e outras também foram feitas ao presidente do TJ-SP, José Renato Nalini. Confira a entrevista ao lado.
Outra questão levantada por Trettel é o risco de o poder público e sua estrutura virarem balcão de reclamação da operadora de saúde, a exemplo do Procon e da ANS. "A operadora não resolve nada administrativamente, só resolve de quem vai para o judiciário", comenta. Ela acrescenta que, em vez de diminuir, a medida pode até aumentar a demanda do TJ. "Os consumidores que ainda não foram à Justiça percebem que é a única solução e, assim, também vão".
Assim, o principal argumento para a criação do núcleo, que é reduzir as demandas judiciais de saúde, pode sair pela culatra. Além disso, para André Bezerra, o argumento da "judicialização excessiva" é falacioso. "Não há cultura de litigiosidade no Brasil, o que existe é cultura da violação de direitos. Quem são os grandes litigantes do país? O Estado ou grandes empresas que, em muitos casos, prestam serviços públicos em regime de concessão e, portanto, deveriam ter um cuidado ainda maior", ressalta o juiz.
Más orientações do CNJ
Desde 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promove a Jornada do Direito da Saúde, evento para discutir as questões envolvendo a saúde e o Judiciário. No ano passado, foram redigidas orientações (chamadas de enunciados) para os juízes na tomada de decisões na área da saúde com interpretações contrárias ao consumidor e ao entendimento que já vinha sendo adotado pelo Judiciário. Uma delas é que os juízes considerem apenas o rol de procedimentos de cobertura obrigatória da ANS.
Felizmente, especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que essas recomendações não vêm tendo influência nas decisões judiciais. "Desconheço colegas que sigam enunciados do CNJ como se fossem normas jurídicas. Pessoalmente, conheço mais juízes que decidem em sentido contrário no caso específico dos planos de saúde", afirma André Bezerra, da Associação Juízes para Democracia, que também é titular da 42ª Vara Cível de São Paulo.
No mês passado, ocorreu uma nova edição da Jornada, da qual o Idec participou. Novamente, o cenário não foi favorável para o consumidor, que estava subrepresentado (havia muito menos entidades consumeristas do que operadoras de planos de saúde). "As propostas de enunciados foram em sua maioria feitas por operadoras e votadas pelos presentes na jornada, que, majoritariamente, também eram operadoras. Na prática, os enunciados são orientações das operadoras ao judiciário", afirma Joana Cruz.
Ela relata ainda outro problema: "Segundo o regulamento da Jornada, um de seus objetivos era consolidar entendimentos majoritários da Justiça. Porém, muitas propostas de enunciados aprovados iam contra súmulas de tribunais, o que coloca em xeque o objetivo do evento".
SAIBA MAIS
Confira as regras sobre reajuste por mudança de faixa etária nos planos de saúde. Acesse: http://goo.gl/laOjS9 ou http://goo.gl/N0zFxy (exclusivo para associados).
ENTREVISTA: JOSÉ RENATO NALINI
Confira a entrevista com o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador José Renato Nalini, sobre o Núcleo de Apoio Técnico e Mediação (NAT), realizada por e-mail em 18 de maio.
Como será, na prática, o funcionamento do núcleo de mediação? Pelo que foi divulgado na imprensa, a ideia é propor um acordo em até 24h. Haverá um grupo de plantão para avaliar os pedidos?
JOSÉ RENATO NALINI: O juiz do processo, se desejar, poderá solicitar o apoio do núcleo para uma composição entre as partes. O NAT ofertará proposta de acordo e a parte autora [o consumidor], que já está assistida por advogado, aceitará ou não a proposta. Não aceito o acordo, o juiz imediatamente decide sobre a liminar, sem atraso no andamento do processo. Ao mesmo tempo, a ANS receberá a informação e pode tomar a providência administrativa que entender necessária, ou informar automaticamente ao juiz sobre o rol de procedimentos, regras, cobertura etc.
Quando o NAT vai começar a funcionar?
JRN: Provavelmente em 30 ou 40 dias.
Por que há intenção de analisar uma proposta de acordo antes de avaliar o pedido de liminar se há audiência de conciliação depois? A ideia é evitar a concessão de liminares?
JRN: A ideia é evitar o lento e dispendioso processo judicial se a questão puder ter solução eficiente e rápida na via conciliatória. Uma sentença, um despacho ou um acórdão representam intervenção do Estado-juiz na esfera da vida privada. Esta pode ser substituída com vantagens pela autonomia da vontade das partes, caracterizando uma solução mais legítima, porque negociada e protagonizada pelos próprios interessados. Além disso, ao contrário do que foi divulgado por alguns órgãos de imprensa, haverá no núcleo um profissional da saúde do tribunal e não das operadoras.
No caso de plano de saúde, um pedido de liminar é feito quando há risco iminente à saúde do consumidor. Ao criar uma etapa de mediação antes da decisão do juiz, não há possibilidade de se elevar esse risco?
JRN: No mesmo dia em que o juiz recebe o processo para analisar a liminar, ele poderá, enquanto avaliar os autos, também autorizar que o NAT tenha acesso ao processo eletrônico e pedir apoio técnico ao profissional de saúde do tribunal. Mas se ele entender que imediatamente deverá conceder a liminar, ele o fará. Respeita-se, integralmente, a independência judicial.
De quem foi a iniciativa de criar o núcleo? Por que ele conta com dois representantes das operadoras de planos de saúde e nenhum de consumidores?
JRN: A ideia foi do Comitê Executivo Estadual de Saúde, em observância à recomendação do CNJ [Conselho Nacional de Justiça], no sentido de fomentar a mediação e conciliação e envidar esforços para a solução adequada de ações que envolvam saúde. É um caminho já trilhado, tradicionalmente, para resolver interesses individuais. Não se exclui a participação de representantes de consumidores. Aliás, ela é bem-vinda.
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, as operadoras de planos de saúde estão pagando a reforma da sala que vai sediar o NAT. Não há conflito de interesses em aceitar ajuda financeira das operadoras?
JRN: O termo firmado pelas partes e disponível na internet prevê a responsabilidade de cada um. O espaço físico é de responsabilidade do tribunal. O Judiciário é carente de quase tudo, e as contribuições, doações, ofertas, investimentos etc. são muito bem aceitas. Tudo se faz de forma transparente. Sem a colaboração da iniciativa privada, o Tesouro não conseguirá arcar com o crescimento da máquina. Afinal, a Justiça é de todos e não é favor discutir seus rumos e assumir responsabilidades para que ela funcione com eficiência.
Decisão que libera reajuste por faixa etária para idosos e criação de núcleo de mediação com interferência de operadoras de planos de saúde levantam preocupação sobre retrocessos nos direitos do consumidor na Justiça
Preocupação, retrocesso e caos. Essas foram algumas das palavras usadas por especialistas para definir o cenário que se avizinha para consumidores de planos de saúde. O que leva a essa leitura é uma série de más notícias dos últimos meses em relação à saúde suplementar.
Em abril, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) permitiu à Amil reajustar planos de saúde de idosos por mudança de faixa etária, o que é vedado pelo Estatuto do Idoso (lei federal nº 10.741/2003) e contraria o entendimento predominante na Justiça. Até então, a tese que prevalecia era a de que esse reajuste não pode ser aplicado a usuários a partir de 60 anos de idade, pois isso caracterizaria discriminação dos idosos.
O debate que se travava no judiciário até o momento era se o Estatuto é aplicável a contratos firmados antes de ele entrar em vigor, em 2004 – e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) já tinha até súmula (entendimento reiterado do Tribunal, que pode orientar a decisão de outros juízes) confirmando que sim.
Essa nova decisão fez uma interpretação totalmente diferente do Estatuto do Idoso e considerou que reajuste por mudança de faixa etária, independentemente da data de celebração do contrato, sequer caracteriza discriminação, pois "não está onerando uma pessoa pelo simples fato de ser idosa, mas por demandar mais do serviço ofertado" – diz a decisão do STJ.
Apesar de valer especificamente para consumidores da Amil, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP), autor da ação civil pública avaliada pelo STJ, afirma que a decisão pode abrir um precedente perigoso. "Mudanças na composição do Tribunal ou de suas turmas podem levar a alterações na jurisprudência, e o acórdão proferido no caso da Amil pode servir de precedente, infelizmente", lamenta a promotora Cláudia Beré.
A advogada do Idec especialista em planos de saúde, Joana Cruz, também vê risco. "Como a decisão é do STJ, ela tem um peso que pode mudar a jurisprudência favorável aos consumidores. É um mau precedente, ainda que a decisão não seja vinculante", diz. Daniela Trettel, doutora em Direito e pesquisadora em saúde coletiva, acrescenta que o fato não é isolado no tribunal, o que coloca em risco direitos do consumidor como um todo. "O STJ tem dado uma guinada num sentido menos protetivo ao cidadão, de diminuição de direitos", afirma.
Já a advogada especialista em direito à saúde, Renata Vilhena, é menos pessimista. "Trata-se de uma ação promovida pelo Ministério Público, em que cada um dos clientes envolvidos não pôde intervir na defesa. Não foi uma decisão unânime, houve voto divergente, mas sabíamos que causaria muita repercussão por valer para os contratos da Amil", pondera. Ela lembra que a decisão não impede que cada consumidor ingresse com ação individual para discutir a abusividade de seu caso. "Continuo entrando com ações e obtendo liminares, então sigo convicta de que quem entrar individualmente vai conseguir anular [o reajuste por faixa etária]".
O MP-SP informou que o Ministério Público Federal já entrou com embargos de divergência – tipo de recurso que só é possível quando a decisão do colegiado não é unânime – para reverter a decisão do STJ nesse caso.
Além dos riscos no Judiciário, preocupa um possível retrocesso no âmbito da regulação. Notícia veiculada pela Folha de S. Paulo no início deste ano aponta que o governo pretende "expandir" a oferta de planos individuais e, para isso, pode "desregular" o segmento, permitindo reajustes livres e rescisão unilateral de contratos – tornado-os assim mais atraentes para as operadoras e mais prejudiciais para os consumidores.
Atualmente, a oferta de planos individuais é muito inferior à de planos coletivos, que dominam cerca de 80% do mercado, justamente porque a regulação dos coletivos é muito mais frouxa.
Para Joana Cruz, uma iniciativa nesse sentido "nivelaria por baixo" o mercado. Ela explica que, de acordo com a Lei de Planos de Saúde e com a lei de criação da ANS, a agência deveria regular os dois tipos de planos, mas, para solucionar um problema de oferta de mercado, em vez de regular também os coletivos, o órgão pensa em desregular o individual. "É uma opção política, que pode estar ligada com a chamada 'porta giratória' na ANS, isto é, diretores e cargos estratégicos da agência são ocupados por representantes de mercado, que depois saem da agência reguladora e voltam para o mercado", aponta.
Em nota, a ANS disse que estuda medidas para melhorar a oferta de planos, mas que a proibição da rescisão unilateral e o controle dos reajustes dos planos individuais serão mantidos.