SOS alimentação saudável
No Dia Mundial do Consumidor, campanha pressiona pela criação de tratado global para combater epidemias ligadas à má alimentação. Entenda a proposta, inspirada em experiência positiva de controle do tabaco e que tem o apoio do Idec no Brasil
Mais de dois bilhões de pessoas acima do peso – ou quase 30% da população mundial; cerca de 11 milhões de mortes por ano ligadas à alimentação inadequada; e um impacto econômico que chega a dois trilhões de dólares por ano – ou quase 3% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial. É diante desse cenário alarmante que a Consumers International (CI) – federação que reúne entidades de defesa do consumidor em todo o mundo, entre elas o Idec – lançou sua campanha para o Dia Mundial dos Direitos do Consumidor, celebrado em 15 de março.
O objetivo central da campanha é chamar a atenção para o fato de que todo consumidor tem direito não apenas à alimentação, mas à alimentação saudável e adequada. A partir desse mote, a ideia é pressionar diretamente a Organização Mundial da Saúde (OMS) para a criação do Tratado Mundial de Promoção e Proteção da Alimentação Saudável.
A inspiração da proposta é a Convenção Quadro para Controle do Tabaco, o primeiro tratado internacional de saúde pública da história da OMS. Em vigor desde 2005, o acordo vincula todos os países signatários (178 no total) a implementar um rol de medidas antitabaco em nível local com metas e prazos a cumprir. Entre as ações obrigatórias, estão a proibição da propaganda de cigarro, a promoção da educação e de conscientização da população e a inserção de advertências nas embalagens, por exemplo.
Desde então, uma série de avanços foram obtidos em relação ao tabagismo mundialmente. Na Turquia, por exemplo, país com forte tradição cultural de uso do tabaco, o número de fumantes caiu 13% entre 2008 e 2012 – mas ainda é considerado alto, com mais de um quarto da população fumante, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2013. Aqui no Brasil, o percentual de fumantes caiu de 15,7% da população em 2006 para 11,3% em 2013, segundo dados do Ministério da Saúde.
REPLICAR O MODELO
A CI acredita que o mesmo modelo antitabaco pode ser aplicado para melhorar o padrão da alimentação. Segundo a entidade, um tratado criaria um ambiente internacional favorável à implementação de políticas pelos governos nacionais. "Sob instrumentos jurídicos internacionais como esse, os Estados membros teriam a obrigação de criar mecanismos de implementação de políticas públicas em nível nacional, que ajudariam a reduzir os atuais níveis de doenças não transmissíveis", diz Hubert Linders, coordenador do Programa Alimentar da Consumers International.
A CI chama atenção, ainda, para a importância do tratado para países com menos peso político. "Principalmente para Estados menores, precisamos de um acordo internacional para conseguir combater o lobby poderoso de empresas multinacionais", destaca Linders.
A nutricionista e pesquisadora do Idec, Ana Paula Bortoletto, defende o mesmo raciocínio. Ela ressalta a importância de um conjunto de países se unirem em contraponto ao poder das indústrias, que é global. "Não faz sentido apenas um país regular certas questões sem que outros também o façam. Em alguns casos, é até impossível: as regras de rotulagem, por exemplo, são unificadas entre os países do Mercosul. O Brasil não pode mudar sozinho", explica. Ela acrescenta, ainda, que, à medida que ações em um país dão certo, elas tendem a se expandir para outros locais. "O México começou a sobretaxar refrigerantes e já é um exemplo no qual diversos países estão de olho."
Outro aspecto que reforça a importância de uma coordenação internacional, de acordo com a CI, é o fato de que mais de 60 países já têm estratégias locais em andamento para reduzir dietas pouco saudáveis, mas nenhum deles obteve ainda uma redução significativa nos níveis de sobrepeso e de obesidade.
Para Maria Laura Louzada, mestre em saúde pública e pesquisadora em epidemiologia pela Universidade de São Paulo (USP), a aposta no modelo de tratado internacional deve levar em conta as diferenças entre cigarro e alimentos quando o assunto é regulação. "Tabaco é um produto isolado e, portanto, mais facilmente identificável como um fator de risco. Simplificando, dividimos o fumar em 'sim' ou 'não', o que torna o estudo dos seus malefícios mais fácil. Apesar de já termos várias evidências do papel nocivo de alguns alimentos, como o refrigerante, precisamos estudar não só os alimentos isolados, mas suas quantidades, interações com outros alimentos e inserções nos padrões de alimentação para entendermos como eles afetam a vida das pessoas", ressalva.
Apesar de alertar para essas peculiaridades, Louzada apoia a medida proposta pela CI. "Já existem evidências suficientes para embasar ações no campo da alimentação, e o modelo de combate ao tabagismo, que combina informação, educação, taxação e regulação governamental, é imprescindível", complementa.
PROPOSTAS CONCRETAS
Ainda não há uma proposta pronta para o tratado, mas a Consumers International já elaborou um documento com alguns pontos básicos. Entre eles, estão: educação nutricional, conscientização da população e fornecimento de informações nutricionais adequadas; controle e responsabilidade em patrocínios e propagandas de alimentos e bebidas; melhoria da qualidade nutricional de alguns alimentos, reduzindo níveis de nutrientes potencialmente danosos; taxação e subsídio para determinadas categorias de alimentos.
A nutricionista do Idec explica que a expectativa é que o documento internacional impulsione a adoção de medidas de regulação, as quais, hoje, mesmo diante da vontade do governo, acabam não sendo implementadas. "Exemplo disso é a tentativa da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] de regular a publicidade de alimentos não saudáveis por meio de alertas no rótulo e nas propagandas, que naufragou. A resolução foi aprovada em 2010, mas antes que entrasse em vigor foi derrubada na Justiça a pedido da indústria", lembra Bortoletto. Outra proposta que poderia ganhar força com a assinatura do tratado é a de tornar a informação nutricional nas embalagens de produtos industrializados mais clara para o consumidor.
Por essas razões, o Idec apoia a iniciativa de criação do tratado e espera, claro, que o Brasil seja signatário. Uma vez aprovado, o Instituto pretende colaborar para a implementação de metas para promover a alimentação saudável. "O Idec pode exercer o controle social, acompanhando e avaliando metas e prazos desse processo", sugere a nutricionista.
No ano passado, a entidade enviou uma carta para o Ministério da Saúde pedindo a contribuição do governo brasileiro para levar o assunto à reunião regional da OMS para as Américas, que aconteceu entre setembro e outubro nos Estados Unidos. Na campanha deste ano, o Idec vai colaborar com um "compartilhaço" mundial sobre o tema nas redes sociais, marcado para 15 de março. Confira outras ações para o Dia Mundial do Consumidor na seção Idec em Ação desta edição.
Paralelamente ao esforço por um tratado internacional na OMS, diversas políticas para promover a alimentação saudável já vêm sendo tocadas mundialmente. No Brasil, há medidas dando certo e outras nem tanto, de acordo com Ana Paula Bortoletto. Um exemplo de sucesso é a obrigatoriedade de que pelo menos 30% das compras da alimentação escolar sejam de alimentos frescos provenientes da agricultura familiar, preferencialmente orgânicos. "Funciona porque há vários mecanismos que contribuem para que a lei seja de fato implementada", afirma.
Já em relação às políticas de regulação brasileiras, o cenário não é tão animador. O Ministério da Saúde tem investido muito na regulação voluntária, em vez da adoção de medidas obrigatórias. É o caso dos acordos de redução de teor de sódio pela indústria de alimentos. "O Idec acompanha o acordo e já avaliou que as metas de redução são tímidas e, como são voluntárias, se a indústria não cumpre, não tem nenhum tipo de punição", afirma a nutricionista.
Quanto à rotulagem de alimentos, a Anvisa vem se esforçando para implementar melhorias, mas o processo é lento, pois as mudanças dependem da aprovação dos países do Mercosul. "O Idec participa de dois grupos de trabalho e de outras discussões sobre rotulagem e está acompanhando de perto esse processo", finaliza Bortoletto.