Calote milionário
RAIO-X DA DÍVIDA
O levantamento do Idec também mostra que mais de três quartos (76%) das 1.505 operadoras cobradas estão em dívida com o SUS (ou seja, deixaram de pagar todo o valor cobrado ou parte dele) – ao todo, são 1.145 operadoras inadimplentes. Apenas 358 (24%) operadoras não devem nada – ou seja, não possuem débitos que não foram pagos ou parcelados. O porcentual de operadoras que não pagaram nem parcelaram nenhuma parte de suas dívidas é maior que o de operadoras adimplentes – 26%, o que corresponde à monta de mais de R$ 300 milhões.
Também muito preocupante é a constatação de que quase metade das operadoras cobradas (45%) estão inativas; isto é, não existem mais. Enquanto a inadimplência global é de 76%, apenas entre as operadoras inativas chega a 81%.
O maior valor cobrado pela ANS foi para a operadora Amil Saúde Ltda.: mais de R$ 62 milhões. Destes, 97% foram pagos, mas a empresa deve ainda R$ 1,7 milhões aos cofres públicos. Já o maior valor devido e não pago é de R$ 36 milhões, da Hapvida Assistência Médica Ltda., que simplesmente não pagou um centavo sequer do que lhe foi cobrado. Confira abaixo as dez maiores dívidas.
No afã de tentar fazer com que as operadoras paguem as dívidas, a ANS pode parcelar, total ou parcialmente, o montante devido. Mas nem assim o nível de inadimplência cai: segundo o levantamento, 18% do total de valores cobrados foram parcelados, o que corresponde a mais de R$ 271 milhões. No entanto, 73% das operadoras que parcelaram as dívidas continuaram inadimplentes. "A ANS precisa mudar o sistema de cobrança, deve haver mecanismos mais eficazes", avalia Joana Cruz.
MODELO DE FINANCIAMENTO
Para o Idec, o ressarcimento ao SUS é importante como modelo de financiamento e política pública de saúde. "É uma forma de ajudar a pagar o prejuízo causado pelas operadoras e de evitar enriquecimento ilícito dessas empresas. Elas recebem mensalidades dos consumidores e deixam de cobrir os tratamentos devidos; é inaceitável que não ressarçam o SUS por prestar esse atendimento", defende Cruz.
A professora Ligia Bahia avalia que a questão mais importante nem é tanto o dinheiro, mas saber exatamente quanto os planos deixam de atender. "O que estamos tentando é estabelecer bases para uma justiça contábil, que inclui o ressarcimento, mas também inclui os subsídios e outros dispositivos que têm a equidade como vetor comum", diz. Em outras palavras, não podemos admitir, como se diz à boca pequena, que o produto vendido pelas operadoras sejam vagas no SUS.
ATENDIMENTO NEGADO
Para cobrar o ressarcimento, a ANS considera apenas os procedimentos previstos pela lista da própria agência – no caso dos planos de saúde novos – e os estipulados contratualmente – no caso dos planos antigos, firmados antes de 1999. A posição do Idec, no entanto, é de que essa lista mínima de procedimentos obrigatoriamente cobertos deveria ser ampliada em ambos os casos, conforme, aliás, determina a própria Lei de Planos de Saúde, em seu artigo 10. Tal artigo prevê que todos os tratamentos que não sejam de finalidade estética, ilícitos, medicamentos importados não nacionalizados, próteses, órteses e acessórios não ligados ao ato cirúrgico devem ser cobertos pelas operadoras dentro das segmentações contratadas.
A despeito do teor desse artigo, constata-se que alguns procedimentos não fazem parte do rol da ANS, como transplantes de coração, pulmão, fígado e pâncreas. Portanto, se a lista de procedimentos estivesse em conformidade com o que prevê a legislação, a dívida de R$ 706 milhões dos planos com o SUS poderia ser ainda maior. Segundo a agência, os dados divulgados referem-se a todo o histórico de ressarcimento ao SUS, que começou a ser contado em setembro de 1998 – ou seja, há mais de 16 anos.
Mas o grande mistério por trás da questão é entender por que alguém que se dispôs a pagar por um plano de saúde privado abriria mão dos serviços que contratou e recorreria ao SUS. Para Cruz, a hipótese mais provável é que os usuários se dirigem aos hospitais públicos porque tiveram o atendimento ou tratamento recusados pelas operadoras (o que é conhecido como "negativa de cobertura"). Ligia Bahia, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva dessa universidade, vai na mesma linha: "Os usuários de planos de saúde recorrem ao SUS porque não conseguem ser atendidos na rede privada".
A esse respeito, é reveladora uma reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo em novembro do ano passado, que mostra que, em 2013, a ANS recebeu a notificação de mais de 72 mil casos de usuários cujas coberturas médicas não foram autorizadas pelos convênios. O número é mais de cinco vezes maior que o registrado em 2010 (cerca de 13 mil casos).
Porta giratória
Uma das principais críticas feitas às agências reguladoras é que, não raro, seus dirigentes alternam os cargos nas agências com postos nas empresas reguladas. A esse fenômeno se tem chamado de "porta giratória". No caso da ANS, essa prática tem sido muito comum. O atual diretor de gestão da agência, José Carlos Abrahão, foi nomeado em maio do ano passado. Imediatamente antes, ele presidiu por quase dez anos a Confederação Nacional de Saúde (CNS), que congrega empresas do setor. A CNS ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o artigo da Lei de Planos de Saúde que versa sobre o ressarcimento ao SUS. Além disso, Abrahão integra a diretoria colegiada da ANS, a quem compete julgar os recursos das empresas que questionam os ressarcimentos, o que pode ser um forte indício de conflito de interesses.
O Idec e as organizações civis que atuam na área da saúde encabeçaram um movimento contrário à indicação de Abrahão ao posto na ANS; mesmo assim, ele foi nomeado. "Sem dúvida existe um paralelo entre o fenômeno do 'portal giratório' e a morosidade da ANS em cobrar as operadoras", afirma Ligia Bahia.
Outro caso recente de "porta giratória" na ANS foi o de Elano Figueiredo, nomeado diretor da agência em agosto de 2013. No currículo que ele enviou ao Senado, onde posteriormente seria sabatinado, Figueiredo omitiu que advogara em favor de operadoras de planos de saúde. Uma delas é exatamente a Hapvida, a operadora com o maior montante devido e não pago ao SUS. O Idec levou o caso à Comissão de Ética Pública da Presidência da República, que entendeu a omissão no currículo como falta de conduta ética. Resultado: ele acabou renunciando ao cargo.
Um fato que chama a atenção é como, a despeito de estarem endividadas, as operadoras de planos de saúde "investem" milhões no financiamento de campanhas eleitorais. Segundo estudo de Ligia Bahia e Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e conselheiro do Idec, nas eleições de 2014 foram repassados mais de R$ 8 milhões a campanhas políticas. Os números foram extraídos do sistema de prestação de contas do Tribunal Superior Eleitoral e incluem apenas as duas primeiras parciais; a prestação final de contas dos partidos e candidatos ainda não havia sido feita.
A Amil, sozinha, doou R$ 4 milhões à candidatura de Dilma Rousseff (quantidade três vezes maior do que o valor devido ao SUS). Foi a empresa que mais doou. Além de Rousseff, os planos de saúde contemplaram outros 29 candidatos: 15 a deputado federal e 13 a deputado estadual, de vários partidos. A segunda empresa que mais doou foi a Bradesco Saúde — R$ 3 milhões, seguida da rede Unimed, com R$ 688 mil.
Operadoras de planos de saúde devem R$ 706 milhões ao SUS por atendimentos no sistema público a consumidores de planos privados
Até setembro do ano passado, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) cobrou das operadoras de planos de saúde mais de R$ 1,5 bilhão. Levantamento feito pelo Idec aponta, no entanto, que 64% desses valores ainda não foram quitados (18% foram parcelados e 46% totalmente caloteados). Somadas, as dívidas de todas as operadoras chegam a mais de R$ 706 milhões.
Mas, afinal, de que se trata essa dívida? A natureza dessa cobrança está descrita no artigo 32 da Lei de Planos de Saúde (Lei Federal nº 9.656/1998), segundo o qual as operadoras devem ressarcir os serviços de saúde prestados a seus clientes por instituições integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em outras palavras, os custos dos atendimentos feitos pelo SUS aos consumidores das operadoras devem ser reembolsados pelas empresas aos cofres públicos. À ANS cabe calcular e cobrar esses valores, que devem ser direcionados ao Fundo Nacional de Saúde. "As pessoas contratam planos de saúde justamente por buscar uma alternativa ao atendimento do SUS. Quando a operadora recebe do consumidor e não presta o serviço contratado, ela vende uma vaga no sistema público. Ao sequer pagar essa dívida, a empresa onera ainda mais o sistema público e tem um lucro indevido", afirma Joana Cruz, advogada do Idec responsável pelo levantamento.
Os dados sobre o ressarcimento foram divulgados pela ANS em seu site em outubro, mas em arquivo fechado, o que impedia a filtragem e análise das informações. Assim, o Idec pediu, pela Lei de Acesso à Informação, o envio dos dados em formato aberto. Dessa forma, foi possível chegar a esses valores e a outras considerações quanto à inadimplência das operadoras. "Ao divulgar os dados em formato fechado, a ANS viola o artigo 8º da Lei de Acesso à Informação, que determina que as informações de interesse coletivo ou geral divulgadas devem possibilitar a gravação de relatórios eletrônicos em formato aberto, de modo a facilitar a análise dos dados", destaca Cruz.
Às vésperas do fechamento desta edição, a agência divulgou em seu site novas informações sobre o ressarcimento, atualizadas até novembro de 2014, mas novamente em formato ilegal, fechado, o que impossibilitou a atualização do levantamento, pois não é possível verificar o montante devido pelas operadoras e cobrado pela ANS. Assim, os dados apresentados nesta matéria são os de até setembro de 2014.
Para saber quais operadoras devem ressarcir e qual é o valor da dívida, a ANS cruza os dados dos sistemas de informações do SUS (dos quais consta a identificação dos usuários atendidos pelo sistema público) com o Sistema de Informações de Beneficiários da própria agência. Constatado que o paciente atendido pelo SUS tem um plano de saúde, a ANS verifica se o procedimento ao qual a pessoa foi submetida está ou não previsto no contrato do plano. Se estiver, é enviada uma notificação à operadora, com a discriminação dos valores (estes estão previstos por tabela elaborada pela própria agência). A operadora pode contestar a cobrança (por exemplo, o paciente pode ter deixado de ter um plano de saúde e pouco tempo depois ter sido atendido pelo SUS). Se, no entanto, a operadora não conseguir convencer a ANS de que a cobrança é indevida, o ressarcimento é mantido, restando à operadora a opção de entrar com um recurso administrativo.