Difícil de aprovar
Estudo do Idec analisa 81 projetos de lei em tramitação na Câmara e no Senado para regular a publicidade de alimentos. Propostas há muitas, o problema é fazê-las sair do Congresso
Os crescentes níveis de obesidade e sobrepeso da população brasileira, incluindo as crianças, são preocupantes. Segundo uma pesquisa do Ministério da Saúde divulgada no primeiro semestre deste ano, 50,8% dos adultos está acima do peso. O problema atinge todas as faixas etárias, grupos de renda e regiões brasileiras. Além disso, também aumentam os índices de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), como problemas cardiovasculares, diabetes e câncer. Segundo uma publicação do mesmo ministério, cerca de 72% das mortes no Brasil em 2007 foram causadas por DCNTs.
O tema tem mobilizado o Congresso Nacional. Desde o ano 2000 até agosto de 2014, a Câmara e o Senado colocaram em pauta nada menos do que 81 projetos de lei (PLs) propondo novas regras para o marketing e a publicidade de alimentos ultraprocessados – ricos em sal, açúcar ou gordura saturada e cujo consumo elevado é considerado uma das causas da epidemia de obesidade e DCNTs. Foi o que levantou a pesquisa do Idec Publicidade de alimentos não saudáveis: os entraves e as perspectivas de regulação no Brasil, realizada em agosto e setembro, e cujos resultados completos estão publicados em um livro a ser lançado este mês.
As propostas contidas nos PLs são variadas: restringir a propaganda desses produtos para crianças e em escolas, banir a distribuição de brindes e incluir alertas sobre os riscos de seu consumo excessivo estão entre as mais frequentes. Nenhuma delas, porém, foi aprovada até hoje. “O trâmite lento e os interesses econômicos contrários à regulação são fatores que dificultam o avanço desses projetos”, afirma a advogada Mariana Ferraz, consultora do Idec que conduziu a pesquisa.
“Os resultados do levantamento mostram que, apesar do grande número de projetos de lei sobre regulação da publicidade de alimentos, ainda precisamos avançar na qualidade e pertinência dos temas abordados”, ressalta Ana Paula Bortoletto, nutricionista do Idec. “O estudo pretende contribuir para ampliar e qualificar a atuação da sociedade civil organizada para pressionar o Poder Legislativo”, complementa.
O estudo sobre os projetos de lei relacionados à publicidade de alimentos não saudáveis consistiu de três etapas: levantamento dos PLs sobre o tema propostos entre janeiro de 2000 e agosto de 2014, pelo site da Câmara e do Senado; análise quantitativa e qualitativa dos textos e avaliação de 12 especialistas de universidades, governos ou organizações da sociedade; e seleção dos três PLs mais abrangentes.
A pesquisa foi realizada com o apoio do International Development Research Centre (IDRC). Os resultados completos da análise serão publicados em livro, a ser lançado este mês. Confira mais informações no portal do Idec: www.idec.org.br.
PANORAMA
A análise dos PLs foi feita a partir da contribuição de 12 estudiosos do tema, entre acadêmicos, servidores públicos e representantes da sociedade civil organizada, que opinaram sobre a pertinência e a prioridade dos projetos de lei em tramitação. “O estudo traçou um diagnóstico do cenário legislativo no Brasil sobre as proposições regulatórias do marketing de alimentos não saudáveis”, diz Ferraz. “Observou-se, por exemplo, que os legisladores reverberam as manifestações da sociedade civil no âmbito do Executivo.”
Um exemplo claro disso, segundo a advogada, é o sensível aumento de proposições de projetos de lei após a consulta pública no 71 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que tratou da regulamentação da publicidade de alimentos, entre 2006 e 2007. Na época, o Idec e diversas entidades de defesa da saúde pública e dos direitos das crianças manifestaram-se sobre a necessidade da regulação.
Contudo, após anos de discussão, a resolução que resultou das discussões – a RDC nº 24, aprovada em 2010 –, foi suspensa por uma decisão judicial a pedido das empresas do setor, que contestaram a competência da Anvisa para tratar do tema.
De acordo com o levantamento, os três PLs mais abrangentes e com o maior número de propostas consideradas adequadas e prioritárias foram: o PL 1.637/2007 da Câmara dos Deputados e os PLs 150/2009 e 735/2011 do Senado. Entre as principais propostas que contemplam, estão as que pretendem:
- Incluir alertas na propaganda, publicidade, informação ou qualquer divulgação ou promoção de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans, sódio e de bebidas com baixo teor nutricional;
- Proibir que os produtos alimentícios sejam associados a ideias ou imagens de alimentos naturais, relacionados à alimentação saudável ou à prática de atividades esportivas;
- Barrar a publicidade dirigida a crianças de alimentos e bebidas pobres em nutrientes e com alto teor de açúcar, gorduras saturadas ou sódio;
- Banir a distribuição de brinde, brinquedo, bonificação ou prêmio associado à aquisição de alimentos e bebidas para o público infantil;
- Restringir a oferta de alimentos não saudáveis nas escolas.
PROTEÇÃO À SAÚDE
Entre os textos considerados mais importantes, também está a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 73/2007, que pretende introduzir a propaganda de alimentos na Constituição como objeto de possíveis restrições – ao lado do tabaco, das bebidas alcoólicas e dos medicamentos. “A inclusão expressa [na Constituição] corroboraria para a derrubada da tese de inconstitucionalidade da regulação”, explica a advogada Mariana Ferraz. Para a especialista, porém, essa autorização já é garantida pela Constituição, pois a Carta determina que o Estado tem o dever de proteger a saúde e fiscalizar produtos de interesse ao tema – aí incluídos os alimentos.
Já a tributação dos alimentos e bebidas não saudáveis, com o objetivo de reduzir seu consumo, não foi bem contemplada pelos projetos de lei em tramitação no Congresso. O mecanismo já foi adotado em países como a França, a Dinamarca, a Hungria e o México, que sobretaxaram alimentos ou bebidas com elevado teor de gordura saturada, açúcar ou sal.
Os três PLs que incluíam propostas desse tipo contemplavam apenas incentivos fiscais à produção de determinados alimentos processados. Porém, na opinião dos especialistas consultados pelo Idec, as medidas tributárias deveriam estimular, na verdade, o consumo de alimentos in natura, como frutas, legumes e verduras. E não a ingestão de produtos industrializados.
Estratégias da indústria
O professor Carlos Augusto Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP), compara as estratégias da indústria de alimentos ultraprocessados às dos fabricantes de cigarro e álcool. Em um artigo para o jornal científico britânico The Lancet, publicado em fevereiro de 2013 em coautoria com outros pesquisadores, ele relaciona entre essas manobras o financiamento de pesquisas científicas, cujos resultados comumente são favoráveis aos interesses da indústria. Além disso, segundo o texto, há cooptação de profissionais de saúde e lobby junto a políticos e funcionários públicos, além de campanhas para que a sociedade não veja a regulamentação com bons olhos.
A nutricionista Maria Laura Louzada, pesquisadora do Nupens, avalia que a mobilização da opinião pública é a única forma de contornar toda essa pressão. “Foi o que aconteceu com o tabaco, diante das evidências científicas", afirma. “No México, conseguiram aprovar a lei que faz a taxação especial para os refrigerantes em cima do argumento quase incontestável de que as bebidas causam obesidade."
POR QUE RESTRINGIR
A relação entre o consumo excessivo de alimentos ultraprocessados e o risco de doenças crônicas é amplamente reconhecida pela comunidade científica e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Pesquisadores como Monteiro apontam que esses produtos vêm paulatinamente substituindo refeições menos processadas que fazem parte da cultura de diversos povos. No Brasil, arroz com feijão tem dado lugar a pratos congelados, embutidos, bolachas etc. “Além de terem um perfil nutricional desbalanceado, com açúcar, sódio e gordura elevados, esses alimentos possuem menos micronutrientes, ainda que a indústria alegue sua ‘fortificação’", explica Louzada. “Eles estão associados a vários comportamentos de estímulo ao consumo, como o comer enquanto se trabalha ou dirige. Também são ultrapalatáveis, o que induz o consumo exagerado, e são vendidos em super porções", conclui.