Tá tudo dominado
Levantamento do Idec mostra que, apesar de haver no mercado uma oferta razoável de marcas, é bastante reduzido o número de grupos responsáveis por elas
Imagine uma esdrúxula manchete esportiva, como “Real Madrid e Barcelona anunciam megafusão e criam o maior time da Europa”. Evidentemente uma junção dessa monta está muito longe de acontecer. Afinal, no futebol (e nos esportes em geral), a concorrência faz parte do negócio; abrir mão da competição e da rivalidade significaria abrir mão da própria essência do esporte. Na economia, como se sabe, não prevalece a mesma lógica. Fusões e aquisições de empresas “arqui-inimigas” tornaram- se praxe, no Brasil e no exterior. Casos como Sadia-Perdigão (que redundou na criação da gigante BRF), Nestlé-Garoto, Brahma-Antarctica e Kolynos-Colgate vêm ganhando há tempos as páginas dos jornais. Também é comum que esses gigantescos grupos adquiram empresas menores, pequenas ou médias, diminuindo ainda mais a já combalida concorrência.
Justamente com o intuito de medir o tamanho dessa concentração no Brasil, o Idec fez um levantamento para tentar responder às seguintes perguntas: quantos grupos estão por trás das diversas marcas disponíveis no mercado? Afinal, o número de marcas é muito maior do que o número de empresas que controlam essas marcas? Supermercados de diversas redes foram visitados a fim de identificar as marcas mais presentes. Em seguida, foi feito um cruzamento de informações para saber quais são grupos responsáveis por elas. O levantamento foi feito por segmentos, como produtos de higiene pessoal, de limpeza, cervejas, alimentos etc.
Em todas as categorias analisadas, o número de grupos é menor do que o número de marcas. Ou seja, a concorrência é menor do que dá a entender a miríade de marcas disponíveis nas prateleiras de supermercados. Isso se explica porque, em todos os casos analisados, há grupos que detêm mais de uma marca. Apenas a título de exemplo: a Unilever – que atua em vários segmentos, de produtos de higiene e limpeza a alimentação – é dona de nada menos que três das marcas mais vendidas de desodorantes masculinos: Axe, Dove e Rexona. Sua grande concorrente, a Procter & Gamble, é responsável pelas marcas Gillette e Old Spice. Só aí, com dois grupos enormes, lá se vai quase todo o mercado. Aliás, o segmento de produtos de higiene pessoal, do qual fizeram parte na pesquisa os itens xampu, sabonete e creme dental (além dos já citados desodorantes), despeja nas prateleiras consultadas o impressionante número de 40 marcas diferentes. São responsáveis por elas, no entanto, somente 13 grupos.
São vários os motivos que podem explicar o fenômeno. Para Marcelo Pontes, professor de marketing da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o principal deles é que normalmente as várias marcas de um mesmo grupo têm produtos similares, mas com especificações diferentes. Portanto, os públicos visados pela empresa também são diferentes. “Em boa parte das vezes, o que define esses públicos é a renda, mas não necessariamente”, afirma o especialista. Ou seja, oferecer várias marcas faz com que uma mesma empresa consiga atingir perfis de consumo diferentes dentro de uma mesma categoria. Além disso, Pontes considera que, em alguns casos, as marcas de um mesmo grupo até podem concorrer entre si. “Em todo o caso, o mais importante para a empresa é que o faturamento vá para o mesmo caixa; se alguém tem de brigar com meu produto, que seja eu mesmo”, conclui.
O Idec visitou unidades de quatro grandes redes de supermercados presentes na cidade de São Paulo: Carrefour, Extra, Pão de Açúcar e Walmart, a fim de identificar as marcas presentes em algumas categorias de produtos e a quais grupos elas pertencem. Foram avaliados seis segmentos de produtos: adoçante; cerveja; embutidos e congelados (salsicha, linguiça calabresa defumada e lasanha congelada); higiene pessoal (sabonete, xampu, desodorante masculino e creme dental); limpeza (lava-roupa líquido e em pó e amaciante) e óleos e condimentos (óleos — soja, milho, canola e girassol —, maionese, ketchup, molho de tomate e margarina). Foram considerados apenas produtos nacionais e marcas presentes em pelo menos duas redes de supermercado.
Para saber a quais grupos as marcas pertenciam, o Idec consultou os rótulos dos produtos e também fez uma pesquisa na internet, no sentido de identificar os grandes grupos detentores de outros grupos.
FALSA CONCORRÊNCIA
Os resultados para os outros segmentos seguem invariavelmente a mesma lógica de muitas marcas e poucos grupos. A parte de produtos de limpeza (amaciante e sabão para roupas – líquido e em pó – foram os itens considerados), segundo o levantamento do Idec, concentra-se em 14 marcas, pelas quais são responsáveis sete grupos. Menções importantes às já citadas Unilever e Procter & Gamble e ao grupo JBS (sim, o mesmo do ramo de processamento de carnes), detentor da empresa Flora, que tem muitas marcas de produtos de higiene e limpeza.
No segmento de cervejas Pilsen nacionais, foram encontradas 20 marcas e cinco grupos. Apenas a gigantesca Ambev detém nove marcas – que ocupam quase a totalidade das gôndolas. Em “óleos e condimentos”, do qual fizeram parte os itens óleos vegetais (de soja, milho, canola e girassol), ketchup, maionese, molho de tomate e margarina, o Idec identificou 24 marcas, concentradas em nove grupos. Destaques para as gigantes do agribusiness Bunge e Cargill e para o grupo 3G Capital, dono da marca Heinz e das cervejas da Ambev. O grupo JBS também é bastante forte em margarinas – detém quatro marcas, entre elas a Vigor e a Doriana. E a marca Becel tem uma interessante peculiaridade: pertence à Unilever, mas é fabricada pela BRF.
No mercado de adoçantes, nenhuma novidade: 11 marcas e apenas cinco grupos. Destaques para a Hypermarcas (dona das marcas Adocyl, Finn e Zero Cal) e Wow Nutrition (marcas Assugrin, Doce Menor, Gold e Tal e Qual). A primeira é detentora de um considerável número de marcas em variados segmentos, como higiene pessoal e medicamentos. A segunda atua também na área de bebidas (é dona do suco Su Fresh).
No segmento de embutidos e congelados – foram considerados os itens lasanha congelada, salsicha e linguiça calabresa defumada –, a desproporção entre o número de marcas (seis) e o de grupos (quatro) nem é aparentemente tão brutal. Mas não podemos nos enganar: dois grandes grupos, BRF e JBS (dona da Seara), abocanham quase a totalidade do mercado. Confira, na página ao lado, o número de marcas versus o de grupos em cada segmento. Para ver as marcas de cada grupo, consulte a lista completa disponível no link: http://goo.gl/ljD6nY.
DIREITO DE ESCOLHA PREJUDICADO
Interessante seria desvendar o chamado market share (fatia do mercado que determinada empresa domina) de cada um dos grupos identificados. Isso porque, mesmo que, por hipótese, existissem mil empresas competindo em um dado mercado, não haveria ambiente de concorrência caso uma delas tivesse o poder econômico de abocanhar 99% dos consumidores. Números de market share costumam ser levantados por consultorias e vendidos a boas cifras às companhias interessadas – não são totalmente públicos, portanto. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ligado ao Ministério da Justiça), que tem a missão de evitar a concentração econômica, foi consultado pela Revista do Idec, mas afirmou não dispor sistematicamente desses dados.
Em tese, as principais consequências dessa falta de concorrência são controle de preços (por parte dos grandes grupos) e má qualidade dos produtos – afinal, se há pouca concorrência, há pouca disputa pelo consumidor e, assim, pouco interesse em aprimorar a qualidade do que é ofertado. “O Cade teria todos os instrumentos para poder avaliar se a concentração tem gerado um aumento de preços injustificado, mas ele não cuida propriamente desse assunto”, afirma Carlos Thadeu de Oliveira, gerente técnico do Idec. “O que temos, então, é a impressão – provavelmente verdadeira – de que essa concentração gera um prejuízo ao consumidor em termos de preço e qualidade. O grande controle do mercado está nas mãos de poucas empresas, e isso não é bom”, conclui.
Além disso, analisando-se o exemplo do quadro concorrencial dos segmentos pesquisados pelo Idec, a impressão gerada pode até ser a de que há, em alguma medida, um grau razoável de competição. No entanto, há que se levar em conta a seguinte ressalva: as gôndolas dos supermercados visitados estão quase sempre repletas de um grande número de unidades de poucas marcas (e, portanto, de menos grupos ainda), de modo que as marcas menores contam apenas com parcas unidades.
Fora essa diferença numérica, as marcas dos grupos mais conhecidos ficam expostas nos espaços mais nobres das prateleiras – as marcas menores costumam ficar na última prateleira, próxima ao chão, por exemplo. “Podemos dizer que, hoje, o consumidor não tem margem de escolha. Ele escolhe dentro de um leque de opções muito limitado. Produto bom é o que vende mais? Não necessariamente”, diz Oliveira. O professor de direito Daniel Firmato de Almeida Glória, autor do livro A Livre Concorrência como Direito do Consumidor (editora Del Rey), vai na mesma linha: “A liberdade de escolha do consumidor, direito fundamental, fica restrita e condicionada aos interesses dos oligopolistas que dominam os mercados”.
As conexões entre grandes grupos e grandes marcas são infindáveis. Isso porque as possibilidades societárias são inúmeras: um grupo pode deter todas as ações de uma marca, ser apenas sócio de outra ou somente fabricar para uma terceira marca... Os resultados a que o levantamento do Idec chegou são apenas uma parte de um grande quebra-cabeça societário. Por exemplo, além do caso da Becel (parceria entre Unilever e BRF), podemos citar os sabonetes Nivea e Johnson’s, que são feitos pela JBS, e as lasanhas Aurora, produzidas pela Massa Leve (que, diga-se, também é da JBS). Aliás, as lasanhas de marcas dos próprios supermercados, como Qualitá (Grupo Pão de Açúcar) e Bom Preço (distribuída pelo Walmart) também são feitas pela Massa Leve (JBS).
Embora as marcas próprias não tenham sido o foco da pesquisa, o Idec encontrou outros casos de um mesmo fabricante terceirizando a produção para várias marcas próprias, como nos segmentos de produto de limpeza. Portanto, buscar nos rótulos o fabricante efetivamente responsável pela produção do item é tarefa importante aos que querem fazer uma escolha consciente.