Denunciar para quem?
Levantamento do Idec mostra que os canais de denúncia das principais vigilâncias sanitárias do país têm deficiências
Uma das principais funções da vigilância sanitária é receber e apurar denúncias de irregularidades em alimentos. É para esse órgão que o consumidor deve comunicar a existência de mercadorias vencidas em supermercados, por exemplo, ou problemas em serviços de alimentação, como uma maionese estragada no restaurante por quilo. Embora os Procons também recebam esse tipo de reclamação, as vigilâncias são o principal canal nesses casos.
Mas para que essas e outras denúncias possam ser feitas, é necessário um meio de comunicação entre o consumidor e as vigilâncias. Mais do que isso, é preciso que esses canais sejam facilmente acessíveis. Por isso, o Idec decidiu consultar os sites das vigilâncias de algumas das principais cidades e estados do Brasil e verificar as facilidades e dificuldades que o consumidor enfrenta na hora de localizar um canal de denúncia a esses órgãos.
O levantamento envolveu vigilâncias de nove localidades ao redor do país: dos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e de suas respectivas capitais, além do Distrito Federal. Confira, a seguir.
Foram avaliados os sites de nove vigilâncias sanitárias do país, sendo cinco estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Distrito Federal) e quatro municipais (São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre). Os sites foram consultados entre abril e maio deste ano.
O Idec verificou, em primeiro lugar, se existiam de fato canais de comunicação para o consumidor em cada site. Em seguida, observou se havia canal dedicado exclusivamente para denúncia sobre alimentos, e, por último, se a ouvidoria (quando há) informa ao cidadão a opção de recorrer de uma reclamação não atendida ou negada.
DENUNCIAR É ESSENCIAL
Para o Idec, as deficiências encontradas desestimulam o consumidor a denunciar às vigilâncias e os encoraja a procurar soluções individuais, como redes sociais e sites de reclamação.
O problema é que a opção por uma saída não oficial, além de não colaborar para a compilação estatística dessas reclamações, tende a esvaziar a função desses órgãos como responsáveis pela resolução desses problemas. "Apesar de trazerem soluções imediatas no plano individual, no nível coletivo, as redes sociais pouco colaboram para a elaboração de políticas públicas e garantia de direitos coletivos", avalia o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira.
O médico Gonzalo Vecina, professor da Universidade de São Paulo, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), destaca a importância de o consumidor cumprir o seu papel de cidadão e avisar a vigilância caso identifique algum problema sanitário. "O brasileiro ainda confunde denunciante com traidor, mas denúncia é construção de cidadania", diz. "Por outro lado, o denunciante tem de receber um retorno da vigilância. Se o órgão público não dá resposta, não haverá mais denunciantes, porque o cidadão considerará que não adianta denunciar", acrescenta Vecina.
Municipal, estadual ou federal: quem devo procurar?
As vigilâncias sanitárias no Brasil estão distribuídas nas três esferas de governo: existem órgãos municipais, estaduais e um federal, a Anvisa. A estrutura do serviço reflete o arranjo federativo brasileiro, mas para o cidadão comum, nem sempre é fácil saber qual deles procurar em caso de problema.
Em geral, o consumidor deve sempre procurar a vigilância municipal como primeira opção para problemas do cotidiano. Atender a denúncias sobre restaurantes, padarias, supermercados — ou seja, tudo o que diz respeito a comércio e varejo — é atribuição do município.
Já a fiscalização de indústrias, distribuição e atacado é de responsabilidade estadual. A competência federal, por sua vez, é basicamente relacionada a registros e autorização de funcionamento. Dessa forma, o cidadão pouco irá procurar diretamente a Anvisa — em suma, apenas em casos de produtos ou estabelecimentos sem o devido registro.
A vigilância do Estado do Rio de Janeiro disse que apesar de utilizar o sistema nacional, todas as informações recebidas são tratadas por sua ouvidoria. Afirmou também que no caso de denúncias que não sejam de alçada estadual – como o varejo de alimentos – o contato é repassado ao município.
Já a do Estado de São Paulo informa que seu site está em conformidade com a regulamentação, e que não há exigência de que o canal de denúncias seja separado da ouvidoria, nem que haja um canal exclusivo para alimentos. E completa que "não explicita a opção de recorrer de chamados porque nenhuma solicitação feita à unidade é indeferida".
O órgão de Salvador informou que seu "canal para manifestações abarca denúncia de alimentos, sem precisar detalhar esse tópico". Quanto ao retorno ao cidadão, disse que "se este não estiver de acordo, poderá abrir nova ocorrência". Informou ainda que está em andamento estudo para reformulação do site.
A vigilância estadual da Bahia disse que os canais de comunicação do site deverão passar por atualização.
Procuradas, as demais vigilâncias avaliadas não responderam.
CANAIS INCIPIENTES
Os resultados não foram muito animadores. Todas as vigilâncias possuem, sim, algum canal de comunicação informado em seus sites. Ainda assim, o órgão estadual do Rio de Janeiro sequer tem um canal próprio: ao clicar no item para denúncia, o consumidor é desviado para a ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS), do qual as vigilâncias fazem parte.
Quando se analisa a especificidade dos canais, começam a aparecer problemas. A maioria das vigilâncias não oferece canais separados para denúncia e ouvidoria. Apenas o Estado da Bahia e os municípios de Porto Alegre, São Paulo e Rio fazem essa importante distinção. "A ouvidoria deveria ter um papel específico de resolver os problemas do funcionamento da vigilância, e não acumular a função de receber denúncias sanitárias", explica a nutricionista do Idec, Ana Paula Bortoletto, responsável pela pesquisa. "Quando denúncia e ouvidoria não estão separadas, o consumidor tem de apelar a terceiros para reclamar de mau atendimento ou negligência, em vez de recorrer à ouvidoria da própria vigilância", completa.
Para a sanitarista Silvia Vignola, associada e voluntária do Idec, a provável origem desse problema é a legislação que instituiu as ouvidorias no SUS. "Embora canais de reclamação e de ouvidoria tenham focos diferentes, a portaria que criou essas instâncias aparentemente não considerou o que é tradicionalmente entendido como uma ouvidoria", acredita.
Quando o assunto é denúncia específica sobre alimentos, a situação piora. Porto Alegre e São Paulo são as únicas localidades, das nove analisadas, cujas vigilâncias informam um canal específico para tratar de alimentos – e ainda assim, em Porto Alegre, este serve apenas para notificar surtos. "Porém, o cidadão pode e deve procurar a vigilância em muitos outros casos, como falta de higiene nos locais que manipulam, comercializam, armazenam ou produzem alimentos, doenças ocasionadas pela ingestão de alimentos, problemas de validade dos produtos, adulteração, deterioração", exemplifica Vignola.
É importante ressaltar, no entanto, que denúncias relativas ao comércio varejista de alimentos (supermercados, restaurantes) não são de responsabilidade das vigilâncias estaduais, apenas do município.
Em relação à ouvidoria, além disso, a vigilância do Estado do Rio de Janeiro é a única que indica em seu site a opção de recorrer de uma solicitação não atendida. Veja na tabela da página 25 os resultados da avaliação.