Brincando de esconde-esconde
Propagandas de carro reforçam as qualidades do produto, mas não revelam que o modelo mostrado na imagem custa muito além do preço informado no anúncio
Costuma-se dizer que quem se atenta às letras miúdas de uma bula de remédio provavelmente decide não tomar a medicação. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a propagandas de automóveis: quem se ativer aos detalhes de um anúncio de carro tem grandes chances de perder o interesse pelo produto. Afinal, costumeiramente essas campanhas publicitárias exibem fotos ou imagens de um carrão todo equipado, recheado de acessórios externos e internos – como rodas de liga leve, pintura metálica, faróis de neblina, teto solar, GPS, painel touch screen, câmbio automático etc. Ao lado da tentadora imagem, aparece um preço que não chega a assustar. No entanto, um texto elaborado com letras minúsculas, normalmente localizado na parte inferior da página ou da tela, joga um balde de água fria no consumidor que se deu ao trabalho de ir até o fim da mensagem publicitária: o preço divulgado costuma ter uma série de restrições. O mais comum é que o valor se refira às versões "de entrada" (também chamadas "pé de boi"), com poucos acessórios. Ou seja, o carro mostrado com toda pompa costuma valer alguns milhares de reais a mais do que o preço explicitamente anunciado.
Para medir o tamanho desse descompasso entre preço informado e preço real, o Idec analisou propagandas de carro de oito das principais montadoras presentes no país e pesquisou nos sites de cada empresa o valor correspondente ao veículo que ilustrava o anúncio. Na maioria dos casos, o preço indicado não condiz com as características do modelo mostrado – nas peças avaliadas, a diferença de preço entre um e outro varia de R$ 900 até mais R$ 15 mil! Os resultados completos estão na tabela da página 2.
Afirmar categoricamente quais são e quais não são propaganda enganosa não foi o objetivo da pesquisa, pois os anúncios costumam "brincar" com os limites de uma tênue linha entre o que é explicitamente informado e o que fica subentendido. Assim, esta matéria pretende entrar na onda desse jogo de esconde-esconde e, com bom humor, mostrar que raramente as ofertas dos anúncios são de fato bons negócios. Portanto, se você vir uma propaganda de carro e logo se animar para ir à concessionária, respire fundo, dispa-se do ímpeto consumista, leia as letras miúdas com atenção e, quem sabe, dê alguma risada da desfaçatez dos anunciantes. Provavelmente chegará à conclusão de que não é hora de comprar um carro – ou ao menos vai conseguir fazer a razão prevalecer sobre a emoção.
Os anúncios foram pesquisados nos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo e nas revistas especializadas Quatro Rodas e Autoesporte, no mês de junho. Foram consideradas apenas as propagandas que informavam algum preço. Anúncios sem ambiguidades, subentendidos e sem diferença de preço entre o carro da foto e o valor informado não foram considerados – ou seja, trata-se de uma pesquisa qualitativa, e não quantitativa, pois o Idec considerou que fornecer informações imprecisas é uma prática comum das montadoras.
O fato de algumas empresas não estarem presentes na pesquisa não quer dizer, portanto, que os anúncios por elas elaborados são sempre precisos em termos de informação, já que a pesquisa se ateve ao que foi publicado no mês de junho.
O Idec também identificou que, não raro, as mesmas campanhas publicitárias aqui avaliadas são exibidas na televisão, com o agravante de os detalhes da oferta "piscarem" na tela por pouquíssimos segundos, o que torna praticamente impossível a total compreensão da mensagem.
MUITO MAIS CARO DO QUE PARECE
A maior diferença entre o preço que aparece em destaque e o valor real do carro anunciado foi encontrada em um anúncio da montadora francesa Citroën: nada menos que R$ 15.370. A foto principal é digna de propaganda de margarina: uma família feliz a bordo de um "Novo C3". A família, no caso, é um casal e, no banco traseiro, um simpático cachorro da raça border collie. O cão e a moça olham para cima. Será um pássaro? Um avião? Não, a ideia do anúncio é "vender" o "exclusivo para-brisa Zenith, que proporciona 80% de aumento no campo de visão". Além desse novo para-brisa, outros atrativos do carro são apresentados; por exemplo, "novo motor VTi 120 Flex Start 122 cavalos" e "novo câmbio automático com sistema paddle shift". Bom, mas quanto custa um Novo C3 com todos esses apetrechos? O anúncio responde: "Versões a partir de R$ 39.990" – sem o cachorro, claro, porque está subentendido que ele não está à venda. Certo? Certo, o cachorro não está mesmo à venda. Mas ainda assim o valor está errado: a versão mais barata com o incrível para-brisa Zenith não sai por menos de R$ 45.160. Com Zenith, motor 122 cavalos e câmbio automático, o preço mínimo pula para R$ 55.360... O que acha dessa oferta?
Fica clara a estratégia por trás de anúncios como esse: seduzir o consumidor para que ele se disponha a ir a uma concessionária. Na loja, é hora de o vendedor entrar em cena e convencer o cliente a comprar o carro. "Os vendedores costumam usar uma tática constrangedora. Mais ou menos assim: 'Um carro com esses opcionais custa apenas dois mil a mais. Vamos lá, não é essa pequena diferença que vai impedir que fechemos o negócio'. Aí, a maioria dos clientes, por impulso e constrangimento, acaba batendo o martelo", explica Fernando Monteiro, professor de ética e legislação publicitária da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
Para Carlos Thadeu de Oliveira, gerente de testes e pesquisas do Idec, propagandas desse tipo podem ser consideradas enganosas. "As informações essenciais (como dizer que o preço anunciado se refere às versões básicas) não são comunicadas com a mesma clareza utilizada para anunciar as qualidades do veículo. O que é bom é mostrado; o que é ruim, fica escondido. Isso pode induzir o consumidor a erro", diz ele. O artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor prevê que "é enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços".
"A informação tem de ser clara, imediata, de fácil compreensão. O consumidor, ao ver a propaganda, tem que entender imediatamente que o preço anunciado não é o do produto exibido na imagem. Não pode ter meio termo, não se pode exigir do consumidor a expertise de decifrar os subentendidos", acrescenta Monteiro.
Alguma pesquisa de marketing deve ter indicado que a isca da vez para pescar clientes são tetos solares ou panorâmicos. Além da Citroën, Fiat e Peugeot embarcaram nessa onda. Um anúncio da montadora italiana mostra uma gigantesca foto, de quase uma página de jornal, com um Novo Palio todo equipado. E a frase: "Até ontem não existia carro nessa categoria com teto solar". Abaixo da foto principal, vê-se um close do "teto solar elétrico Sky Wind". Um pouco mais abaixo, o preço: R$ 31.990. Novamente, um incauto leitor provavelmente vai pensar que um carro com as características apresentadas vai custar esses quase R$ 32 mil. Só que não. Uma pesquisa no site da montadora mostra que a versão da foto é a top de linha. Com teto-solar, ela sai por R$ 43.647.
Para promover seu novo modelo, o 208, a Peugeot alardeia o "teto de vidro panorâmico" ao lado da mensagem "versões com ar-condicionado e air bags a partir de R$ 39.990". Mais uma vez: um 208 que, além do teto panorâmico, tem air bag e ar-condicionado deveria, segundo o anúncio, custar ao menos R$ 39.990. Mas um carro com tudo isso (e também na cor branca, conforme mostra a foto) não sai por menos de R$ 46.490. "São só R$ 6.500 a mais. Eu te dou um descontinho e fica tudo certo", diria um vendedor.
PINGOS NOS IS
As letras miúdas desse anúncio do Peugeot 208 (assim como as dos demais anúncios) tentam desfazer possíveis interpretações equivocadas: "Valor a partir de R$ 39.990 à vista para o Peugeot 208 Active 1.5L 8V Flex, 5 portas, cor Rouge Aden (...)". Mas, ora, como o consumidor é obrigado a saber se essa versão tem ou não o bendito teto panorâmico? O slogan da marca, aliás, é bastante sugestivo: "Liberdade? Sim. Fraternidade? Sim. Igualdade? Agora complicou". Talvez possamos acrescentar o vocábulo "honestidade" a essa releitura do lema da Revolução Francesa.
E, por falar nas letras miúdas, há casos em que elas também tentam colocar outros pingos nos is. Um anúncio da Nissan, por exemplo, diz que o modelo March, versão 1.6 S 2013, custa a partir de R$ 32.990 à vista. Ok, muito bom, nesse caso foi explicitado a que versão o preço se refere. Mas eis que, no rodapé da página, vem a escondida e desagradável surpresa: o preço é para unidades fabricadas no ano passado (isso em um anúncio publicado no mês de junho) e para um estoque de incríveis três unidades! O preço da mesma versão, mas fabricada em 2013, é R$ 35.990. Mas R$ 3 mil a mais não é nada, não é mesmo?
Outra montadora francesa, a Renault, exige bastante atenção do leitor que quer entender o real preço do produto anunciado. Diz o texto principal: "Renault Sandero, Stepway e GT Line". Abaixo dele, uma foto com esses três modelos. Abaixo da foto, um texto um pouco menor: "Versões a partir de R$ 27.850". Algum deles custa isso? Não, nossas amigáveis letras miúdas esclarecem: "Preço para o Sandero Authentique 1.0 16V (...). Alguns itens mostrados são opcionais e/ou referem-se a outras versões". Ah, sim... Vai ver que é por isso que o site mostra preços muito maiores para os três modelos da foto: a média entre eles é de quase R$ 40.600.
Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito (Contran) determinam que, a partir de 1o de janeiro de 2014, todos os carros novos comercializados no país (nacionais ou importados) devem ter dois importantes itens de segurança: air bags (para motorista e passageiro) e freios ABS. Hoje, 60% das unidades de um mesmo modelo devem sair da fábrica com os dois equipamentos. Portanto, quem quiser comprar hoje um automóvel novo que tenha esses componentes provavelmente vai ter de pagar um pouco a mais. No ano que vem, dada a concorrência do setor, a tendência é que um carro com air bags e ABS custe o mesmo que o atual preço de um carro sem os dois itens.