Formação médica: uma questão preocupante
ADEMÁRIO GALVÃO SPÍNOLA
É médico com Mestrado e Doutorado em Medicina Ocupacional e professor associado do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) desde 1972
As limitações do sistema de saúde brasileiro e a falta de conhecimento de seus profissionais em toxicologia clínica (ciência que estuda a prevenção e o diagnóstico da intoxicação humana por substâncias químicas presentes no ar, na água, nos alimentos ou usadas como medicamentos) são preocupantes. Isso pode ser percebido, por exemplo, quando uma pessoa apresenta sintomas decorrentes da exposição a um produto tóxico e precisa ser atendida com urgência, seja nas unidades assistenciais do Sistema Único de Saúde (SUS) ou no setor privado. Se a intoxicação for causada pela exposição a agentes ambientais, como, por exemplo, os agrotóxicos – situação cada vez mais frequente em nosso país, o líder no uso dessas substâncias –, provavelmente, a assistência será insatisfatória. Pode haver prejuízos para os pacientes, tanto pela falta de conhecimento do profissional sobre intoxicação por agrotóxicos quanto pela deficiência estrutural do sistema de saúde para prover meios de diagnóstico e tratamento adequados.
Situações como a descrita acima acontecem em decorrência de dois grandes problemas: a omissão do Ministério da Educação em definir critérios para que os quase 200 cursos de medicina existentes introduzam em seu currículo conteúdos nas áreas da Investigação Clínica dos Agravos de Natureza Ambiental e Ocupacional, como fiz nas duas tradicionais escolas de medicina de Salvador (BA); e a limitação do sistema de saúde brasileiro (tanto o público quanto o privado) em prover os exames necessários para se diagnosticar os males causados à saúde, em especial daqueles que trabalham em contato direto com os agrotóxicos.
A exposição aos agrotóxicos quase sempre ocorre na zona rural, onde a dificuldade de investigação diagnóstica é maior. E, ali, a formação médica também é um problema, já que as intoxicações agudas por agrotóxicos, por sua natureza, demandam conhecimento especializado. A situação é ainda mais complexa quando a exposição é crônica, ou seja, a baixas doses, mas de forma continuada, provocando sintomas que podem ser confundidos com os de outras patologias. Muitas vezes, nem mesmo bons especialistas conseguem relacionar um quadro clínico a um ou vários agrotóxicos e, a partir daí, fazer um diagnóstico preciso e definir o melhor tratamento.
Mas o problema do "despreparo" da classe médica vai além da intoxicação por agrotóxicos. O triste e lamentável episódio da boate de Santa Maria (RS) evidenciou o quanto nosso sistema de saúde está despreparado para lidar com intoxicações de maneira geral. Muitos profissionais que atenderam as vítimas não tinham conhecimento nem capacitação para tratar daqueles casos. Além disso, o sistema de saúde importou tardiamente, dos Estados Unidos, a hidroxicobalamina, porque demorou a perceber que as intoxicações não haviam sido causadas apenas pelo CO (monóxido de carbono), mas, principalmente, pelo cianeto.