Sem regras
Como funciona
O serviço é oferecido de inúmeras maneiras. Em geral, as funerárias vinculam seu serviço principal ao “benefício” de consultas e exames. Como não é possível contratar os planos funerários sem os descontos (e vice-versa), a conclusão é que os clientes acabam sendo estimulados a se consultar com os profissionais conveniados às funerárias.
Já as demais empresas que comercializam cartões de descontos cobram mensalidade ou anuidade, e oferecem a possibilidade de o usuário realizar consultas a preços bem abaixo dos da tabela dos médicos, assim como utilizar laboratórios para exames, hospitais, farmácias e outros estabelecimentos comerciais. Algumas empresas oferecem descontos também em psicólogos, fisioterapeutas e dentistas. No site de várias dessas empresas é possível encontrar expressões como “assistência à saúde” e “plano de assistência familiar”, o que pode induzir o consumidor a erro. Isso porque ele pode pensar que o serviço oferecido é um plano de saúde nos moldes previstos pela Lei no 9.656/1998, que estabelece regras para os planos. “Assim, o Idec conclui que as empresas comercializam falsos planos de saúde”, diz Joana Cruz, pesquisadora responsável pelo levantamento.
Os fornecedores que oferecem cartões pré-pagos são menos numerosos. Nesse caso, os usuários precisam inserir crédito neles. No dia da consulta ou do exame, o valor a ser pago (com desconto) será debitado do cartão. Um exemplo é o cartão Americana (cujo nome está sendo alterado para Vegas Card), oferecido no interior paulista. O consumidor paga taxa de inscrição de R$ 35 e mensalidade de R$ 25, que se converte em crédito.
Funerária Camargo (com sede em SP); Sesolupi Assistência Familiar (SP); Organização Funerária das Entidades Beneficentes e Assistenciais de Sorocaba – Ofebas (SP); Funerária Santa Cruz (SP); Plano de Assistência Funerária – Funeplan (SP); Plano de Assistência Familiar Osan (SP); Organização Sorocabana Seol Empreendimentos de Luto – Ossel (SP); Organização Terra Branca (SP); Funerária Bragantino Moreno (MG); Sistema Prever (SP); Sistema Prever (PR); Funerária São Paulo (SP); Funerária Grupo Moreno (SP); Funerária Araújo – Orsola (SP); Assistência Funerária – Grupo Gabetta (SP); Funerária São Francisco (SP); Funerária Campo Santo (SP); Assistência Funeral Abcel (SP); Funerária Americana (SP); Funerária Ourinhos (SP); Grupo Bom Pastor (SP); Plano de Assistência Familiar Boa Viagem (RJ); Funerária Athia (SP); Cartão Desconto Open Line (SP); Cartão Abmed (SP); Medicineservice (RJ); Cartão Saúde Canadá (RJ); Cartão Direct Saúde (SP); Cartão Saúde Agora (DF); ViaMediCard (RS); Dollar Cartão de Saúde (ES); Cartão Mais Saúde (MG); Cartão Americana (SP); Cartão Vida (MG); Cartão Dr. Saúde (SP); Cartão Saúde Certa (RS); Cartão de Descontos Sempre Fácil (PI); Cartão Pré-Pago Sempre Fácil (PI); ASF Saúde (PI); Cartão Isaúde (ES).
Problema antigo
Em nota oficial divulgada em janeiro deste ano, o Cremesp e a APM afirmavam que o sistema de descontos em consultas não é regulamentado por nenhuma lei ou norma. E que, assim, “não apresenta garantias assistenciais mínimas e não se responsabiliza pela integralidade da saúde do paciente”.
Já em 2006, o Cremesp havia publicado a Resolução no 151, considerando infração ética a vinculação de médicos aos programas de descontos das funerárias. Segundo a resolução, nesse tipo de convênio, o ato médico acaba sendo prêmio de uma transação comercial “na qual terceiros, com o objetivo de lucro, estão explorando o trabalho médico”. Dessa forma, vedou a participação de médicos nesse tipo de serviço. Provavelmente, por causa dessa resolução, a maioria das funerárias não anuncia mais os convênios de saúde em seu site – assim, só é possível tomar conhecimento dos descontos por meio de contato telefônico.
No ano passado, o Cremesp identificou 18 empresas que atuam em 95 cidades do interior de São Paulo. “A partir de materiais promocionais, notificamos 575 médicos e 100 diretores de estabelecimentos de saúde, entre clínicas e laboratórios. Em carta enviada no fim de 2011, solicitamos o descredenciamento desses profissionais dos cartões de descontos. Tivemos grande êxito nessa iniciativa, pois a maioria encaminhou o desligamento”, conta Renato Azevedo Júnior, presidente da entidade. Contudo, segundo ele, enquanto a atividade não for normatizada, o problema não será resolvido. “O Cremesp não conseguirá eliminar a prática dos cartões de descontos sozinho”, declara o presidente.
“Saúde suplementar é aquela que não é prestada pela rede pública; independentemente de quem a oferecer, ela deve seguir as regras da ANS”
Joana Cruz, advogada do Idec
As autoridades, por sua vez, tomaram medidas extremamente tímidas. Inicialmente, a ANS até entendeu que o tema estava sob sua competência, conforme informou em comunicado divulgado em 12 de dezembro de 2002. Em janeiro de 2003, publicou uma resolução que determinava que os fornecedores do serviço se cadastrassem junto à agência. Mas, por fim, em junho do mesmo ano optou por apenas condenar a prática e vedar a participação das operadoras de planos e seguradoras de saúde. Em seguida, publicou outro comunicado, dessa vez alertando que os cartões de descontos não são planos de assistência à saúde e que desaconselhava os consumidores a contratá-los. Isso porque não apresentavam garantias assistenciais mínimas, deixando o consumidor vulnerável nas situações de maior risco.
Para o Idec, justamente por isso é que a ANS deveria passar a regular essa atividade urgentemente. Algumas funerárias possuem até clínicas próprias para atendimento ao associado, como a Clínica Campo Santo, da funerária do mesmo nome; e a PreviClin, do Sistema Prever. Isso as aproxima das operadoras de planos de saúde, que possuem rede própria de atendimento, e justifica ainda mais a entrada em cena da agência. Em alguns casos também se verificou que a remuneração dos profissionais de saúde é feita pela empresa e não pelo consumidor, o que igualmente aproxima sua atividade da das operadoras de planos de saúde.
“A regulação da ANS sobre os programas de descontos em saúde e cartões pré-pagos possibilitaria que, assim como ocorre com os planos e seguros de saúde, os consumidores tivessem o respaldo de determinadas garantias decorrentes da normatização e da fiscalização”, afirma Joana Cruz. Tais como o estabelecimento de padrões de qualidade para os serviços prestados; prazos de atendimento; controle e fiscalização dos preços praticados pelas empresas; proibição de rescisão unilateral do contrato pela empresa; e coberturas mínimas obrigatórias. Além da possibilidade de o usuário recorrer à agência para denunciar práticas abusivas e solicitar sua intermediação para solucionar conflitos; e a salvaguarda dos direitos previstos no Código de Defesa do Consumidor. Pesquisa do Idec revela que funerárias e outras empresas que não são operadoras ou seguradoras continuam oferecendo serviços similares a planos de saúde; a ANS, porém, não regula o setor.
Já viu funerária oferecer serviços de saúde? Pois há sete anos o Idec viu e divulgou na edição no 92 da Revista do Idec. As empresas forneciam, junto com sua atividade principal, descontos para consultas médicas e exames – fazendo, portanto, o papel de intermediárias na assistência particular à saúde. O maior problema, na época, era a total falta de regulação por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável por “zelar pela qualidade dos serviços de assistência à saúde suplementar”, conforme estabelece a Lei no 9.961/2000, que criou o órgão. O Idec entende que “saúde suplementar” é toda aquela que não é prestada pela rede pública e que, independentemente de ser oferecida por operadoras, seguradoras, funerárias ou qualquer outro tipo de empresa, deve seguir as regras da ANS.
Em um novo levantamento realizado este ano, o Instituto constatou que não só o problema persiste (já que a ANS ainda se abstém de regular o serviço), como o mercado de programas de descontos em serviços de saúde, oferecidos por funerárias e outros tipos de fornecedores, vai de vento em popa, embora entidades médicas como o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e a Associação Paulista de Medicina (APM) condenem a prática. O Idec encontrou 40 empresas atuando em vários estados. Das 23 funerárias citadas na pesquisa de 2005, 22 continuam em atividade.
O Instituto também buscou dados no Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec), que reúne informações enviadas por Procons de todo o país, e encontrou 64 atendimentos, feitos entre fevereiro de 2009 e maio de 2012, referentes a programas de descontos em saúde. Vale ressaltar que o número de atendimentos apurado pode estar aquém da realidade, já que algumas empresas do ramo são registradas com razões sociais e atividades que não possuem qualquer relação com a prestação de serviços em saúde e podem não ter sido identificadas. Esse artifício também pode ser uma forma de as empresas escaparem de eventual fiscalização. Um exemplo é o cartão Abmed, que pode ser usado em São Paulo, cuja atividade principal da empresa que o fornece, obtida a partir da consulta a seu CNPJ, é descrita como “comércio varejista de livros”. A atividade secundária é “comércio varejista de jornais e revistas”.
Entre os problemas listados no Sindec estão falta de cobertura a consultas ou exames, descumprimento de oferta, rescisão/cancelamento unilateral de contrato e cobrança indevida. Muito embora eles sejam idênticos aos enfrentados pelos usuários de planos de saúde propriamente ditos, a agravante no caso dos programas de descontos é que o consumidor, sem regulação ou regulamentação própria, está menos protegido.
Primeiramente, o Idec acessou o site e telefonou para as funerárias listadas na pesquisa anterior sobre o assunto, realizada em 2005. Depois, levantou outras empresas que comercializam cartões de descontos e pré-pagos por meio de mecanismos de busca na internet. A oferta de descontos em consultas médicas, exames clínicos e laboratoriais e internação hospitalar foi averiguada no site das empresas. Não sendo possível por essa via, foram realizadas ligações telefônicas gravadas, a fim de comprovar a oferta dos serviços.
Além disso, foi feito um levantamento dos atendimentos efetuados pelos Procons de todo o país, de fevereiro de 2009 a maio de 2012, referentes a essas empresas. Os dados estão disponíveis no Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Sindec). Um comunicado contendo os resultados da pesquisa foi enviado à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que ainda não respondeu aos questionamentos do Instituto. Os resultados do levantamento também serão enviados ao Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, do Ministério da Justiça (DPDC/MJ), ao Ministério da Saúde e aos ministérios públicos federal e estadual de São Paulo.
Este trabalho recebeu apoio do Fundo de Direitos Difusos (FDD), do Ministério da Justiça.