Passagem sem volta
Taxa para tudo
As companhias aéreas cobram a mesma taxa tanto para quem cancelar a passagem quanto para quem quiser apenas alterar a data ou o horário do voo. Cancelamento e remarcação seriam, então, sinônimos. Para o Idec, não são. “A alteração da data ou do horário do voo por parte do passageiro não configura rescisão do contrato de transporte aéreo e, por isso, não pode ser onerada como tal”, afirma Flavio Siqueira, advogado do Instituto. Segundo ele, a alteração nada mais é que uma mudança nas condições do contrato, sem caráter unilateral, já que está prevista nas cláusulas contratuais. Siqueira ainda ressalta que não há justificativa para a cobrança de taxa nesse caso, nem mesmo quando a alteração é solicitada momentos antes do horário marcado, porque as empresas já estimam que determinado número de passageiros não irá embarcar e vendem mais bilhetes do que a aeronave comporta (prática chamada overbooking). Assim, não havendo qualquer prejuízo para a empresa aérea, a cobrança de taxa para remarcação é considerada abusiva pelo artigo 51, IV, do CDC, pois coloca o consumidor em desvantagem exagerada.
Quando o passageiro desiste, efetivamente, da viagem, as companhias aéreas cobram duas taxas: uma pela desistência em si, e outra, caso ele queira reembolso do valor pago. Funciona assim: se a pessoa cancelar o voo, mas aceitar ficar com o “crédito” do valor pago para usar na compra de outro bilhete no futuro, paga apenas a chamada “taxa de cancelamento” (a mesma cobrada caso ele peça alguma modificação na passagem); agora, se ela quiser seu dinheiro de volta, terá de pagar outra taxa, comumente designada “taxa administrativa”. Contudo, é direito do passageiro ter seu dinheiro de volta em caso de cancelamento do serviço, como garante o CDC, reforçado pelo artigo 740 do Código Civil. Logo, a cobrança de uma segunda taxa pelo reembolso não tem o menor sentido. “As empresas até poderiam cobrar duas taxas [cancelamento e reembolso], desde que a soma das duas não ultrapassasse 5% do valor pago pelo consumidor”, ressalva Siqueira. Mas só a taxa de reembolso da tarifa Promo, da Tam, por exemplo, custa 60% do valor da passagem.
Com exceção da Avianca, todas as empresas estabelecem valores fixos para a taxa, que variam de R$ 70 a R$ 100, conforme o tipo de tarifa (salvo as modalidades mais caras, que são isentas dessa e de outras cobranças). Considerando a taxa de cancelamento mais barata – R$ 70 previstos pela Gol para a tarifa Programada –, a passagem teria de custar no mínimo R$ 1.400 para que o limite de 5% fosse respeitado. Isso se não houvesse a cobrança pelo reembolso, que para essa modalidade de tarifa “morde” mais 30% do valor da passagem e, por si só, já descumpre a determinação do Código Civil. No caso da Webjet, tanto a taxa de cancelamento quanto a de reembolso têm valores fixos, de R$ 80 a R$ 100 em caso de cancelamento, segundo informa o site, e R$ 100 pelo reembolso. Ou seja, o consumidor que desistir da viagem e quiser seu dinheiro de volta terá de pagar de R$ 180 a R$ 200 por isso, independentemente do valor da passagem. Já de acordo com o site da Avianca, a taxa de cancelamento varia de 10% a 30% do preço do bilhete, e a de reembolso de 10% a 20%, ou ainda uma taxa fixa de R$ 90, dependendo da modalidade da tarifa.
Como exemplo de quanto as taxas cobradas podem ser maiores que o limite estabelecido por lei, o Idec selecionou passagens do Rio de Janeiro para São Paulo em cada uma das companhias aéreas, escolhendo sempre a mais barata. A partir disso, foi calculado quanto seria cobrado caso o passageiro pedisse o cancelamento e o reembolso do bilhete, considerando as regras da modalidade da tarifa escolhida. O que se vê é que em todas as situações o valor total das taxas ultrapassa o da própria passagem. O pior caso é o da Gol, cuja tarifa foi a mais barata entre as pesquisadas, R$ 35,90, mas as taxas cobradas pela desistência somam R$ 90,77 – 252,8% do custo inicial do bilhete. Como ninguém vai pagar mais pela taxa que o valor a ser ressarcido, na prática as empresas impõem ao consumidor a perda integral do dinheiro gasto, caso desista REVISTA DO IDEC • Julho 2012 • 19 da viagem. O não reembolso do valor pago é uma regra prevista pela Tam para a modalidade mais básica de tarifa, a Mega Promo. De acordo com o site da empresa, essa tarifa não é devolvida, ou seja, se o consumidor cancelar a viagem, terá obrigatoriamente que ficar com o “crédito” para comprar outra passagem, pois não pode pedir seu dinheiro de volta. A prática é claramente abusiva. Confira à página 19 a comparação entre as taxas cobradas pelo cancelamento e reembolso das passagens Rio-São Paulo em cada companhia aérea.
O Idec comunicou às cinco companhias aéreas os resultados da pesquisa. Até o fechamento desta edição, porém, apenas duas haviam respondido:
-Tam: alegou que o Código Civil não é a legislação adotada para os contratos de transporte aéreo devido à existência de normas específicas para o setor, e ressalta que segundo a Portaria nº 676/CG-5 do Comando da Aeronáutica “não há limitação para tarifas promocionais”. A empresa disse também que disponibiliza informações claras e adequadas ao consumidor em todos os canais de venda.
-Webjet: afirmou que as informações sobre cancelamento e remarcação são apresentadas em diferentes partes de seu site, de maneira clara e organizada. Segundo a companhia, seria “inviável” realizar suas atividades sem que fossem cobrados determinados valores em caso de cancelamento e/ou alteração de passagem, e que tais cobranças são “lícitas” diante da peculiaridade do setor de transporte aéreo.
Cada um diz uma coisa
Raramente o site, o contrato e o SAC informam os mesmos valores para as taxas cobradas. Em alguns casos, até no mesmo canal há informações divergentes. No site da Azul, por exemplo, o valor informado para a taxa de cancelamento muda em diferentes áreas: na seção de perguntas frequentes, consta que ela custa R$ 75, caso o pedido seja feito por telefone ou no aeroporto, e de R$ 50 se for solicitado pela internet; enquanto na página de compra da passagem surge uma mensagem que informa que a taxa para cancelar é de R$ 90.
Em geral, os SACs informaram o valor máximo a ser cobrado pelas taxas de cancelamento e reembolso, já que o custo varia conforme a modalidade tarifária. Porém, em alguns casos, a informação dada pela central de atendimento era totalmente diferente das dos outros canais, como no caso da Avianca. Enquanto o site e o contrato apontam que o máximo a ser cobrado é 30% pelo cancelamento ou pela alteração da passagem, o SAC da companhia informa que podem ser retidos até 50%. Na Webjet há problemas na informação sobre a taxa de reembolso, pois o site aponta que pode custar R$ 100 ou R$ 150, conforme a modalidade tarifária, mas o SAC informa apenas o menor valor, e o contrato não diz nada sobre o assunto.
No que diz respeito à falta de informações, o contrato da Tam é o campeão entre os canais avaliados: não aponta absolutamente nada sobre nenhum dos temas. Já o prazo de reembolso desponta, disparado, como o assunto sobre o qual há menos informações. O tempo que levará para o consumidor receber de volta o valor pago pela passagem em caso de desistência não é indicado em nenhum contrato, nem no site das empresas, com exceção da Avianca. Segundo a página eletrônica dessa companhia, o prazo para todas as modalidades tarifárias é de 30 dias, mas o SAC diz que pode levar de 30 a 70 dias. O período de cerca de um mês também foi informado pelo SAC da Gol, da Tam e da Webjet. O menor prazo para receber o dinheiro de volta é o da Azul: segundo o SAC, são cinco dias úteis. Mesmo assim, esse prazo está em desacordo com a norma da Anac, que determina reembolso imediato. Segundo Siqueira, a princípio, havia outra norma (a Portaria no 676/ GC-5/2000 do Comando da Aeronáutica) que estabelecia prazo de até 30 dias para o reembolso, porém a Resolução no 141/2010 revogou tal dispositivo e estabeleceu a nova regra. “A resolução da Anac garante aos consumidores, desde 2010, o direito de receber de volta o valor pago em espécie ou crédito em conta bancária tão logo cancele a passagem”, afirma o advogado do Idec.
Confira na tabela acima as taxas cobradas pelas companhias aéreas para cada modalidade tarifária, assim como os prazos para reembolso.
Pesquisa do Idec constata que companhias aéreas cobram valores muito acima do permitido para cancelamento de viagem e demoram meses para reembolsar o consumidor, embora uma norma da Anac determine que o pagamento seja imediato
Comprar passagem de avião com antecedência pode ser uma boa maneira de economizar. No entanto, o que era para ser um bom negócio pode se transformar em furada se o consumidor desistir da viagem ou precisar alterar a data ou o horário do voo, já que as taxas cobradas por companhias aéreas podem custar mais que o valor do próprio bilhete. A cobrança de taxas com valores abusivos foi verificada pela pesquisa realizada pelo Idec com as cinco principais empresas aéreas que atuam no país: Avianca, Azul, Gol, Tam e Webjet. O levantamento observou as informações disponíveis no site, no contrato e as fornecidas pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) das empresas a respeito do valor cobrado caso o consumidor desista de um voo nacional, e também sobre o prazo para ele receber seu dinheiro de volta.
Os resultados mostram que as companhias aéreas ignoram completamente as leis e normas que regem as duas questões. No que se refere ao cancelamento, o Código Civil tem uma regra bastante específica e clara, que limita a 5% do valor da passagem o que a empresa pode reter em caso de rescisão de contrato, conforme dispõe seu artigo 740, parágrafo terceiro. No entanto, as taxas cobradas pelas empresas passam de 200%, dependendo do valor da passagem. Quanto ao reembolso, é o artigo 16 da Resolução no 141 da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), aprovada em 2010, que estabelece a devolução imediata do valor pago pelo consumidor. Mas as companhias aéreas preveem, em geral, 30 dias para reembolsar o passageiro. E há casos ainda piores, como o da Avianca, que, segundo seu SAC, pode demorar 70 dias para efetuar o pagamento.
E se não bastasse passar por cima desses direitos garantidos aos passageiros, as empresas ainda desrespeitam o direito à informação, assegurado pelo artigo 6o do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nenhuma empresa informa o prazo para reembolso no contrato e, com exceção da Avianca, tampouco no site. Com relação às taxas de cancelamento, as informações são confusas e contraditórias: o site aponta um valor, o contrato outro, e o SAC um terceiro. Em qual canal o consumidor deve confiar?
A pesquisa, realizada com o apoio do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDD) — do Ministério da Justiça —, avaliou as políticas de cancelamento, remarcação de voo e reembolso para trechos nacionais das cinco principais companhias aéreas que atuam no país: Avianca, Azul, Gol, Tam e Webjet. Foram verificadas as informações disponíveis no site, no contrato e as fornecidas pelo Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) de cada empresa.
A taxa de no show — cobrada quando o passageiro não comparece ao embarque — não foi avaliada, porque o artigo 740 do Código Civil não vale para ela. O objetivo era saber se as taxas cobradas e os prazos previstos para reembolso estão de acordo com os limites estabelecidos pela legislação. Para calcular quanto as taxas representam em relação ao valor da passagem, foi tomado como exemplo um voo que partisse do Rio de Janeiro com destino a São Paulo, em maio, em cada companhia, considerando-se sempre o menor valor disponível.
Descumprimento com aval da Anac
A Portaria no 676/GC-5 do Comando da Aeronáutica, criada no ano 2000, versa, entre outros assuntos, sobre o limite de multa em caso de cancelamento da passagem aérea pelo consumidor. De acordo com a portaria, as empresas podem reter até 10% do valor do bilhete. Apesar de a norma ainda estar em vigor, para o Idec, o que vale é o limite estabelecido pelo Código Civil, pois este se sobrepõe à portaria. “As resoluções e portarias dos órgãos reguladores ou administrativos podem estipular questões específicas do setor, mas nunca contrariar uma lei federal, como é o caso do Código Civil. Assim como uma lei federal, por sua vez, não pode ir contra a Constituição”, explica Siqueira. “Para evitar conflitos, a Anac já deveria ter adequado a portaria ao Código Civil”, completa o advogado do Idec.
De acordo com Danielle Crema, superintendente de Regulação e Acompanhamento de Mercado da Anac, a portaria está em processo de revisão. Mas, além de estar sendo feita quase com uma década de atraso, já que o Código Civil entrou em vigor em 2003, seu resultado não deve beneficiar os consumidores, pois, para a agência reguladora, a lei não precisa ser respeitada em todos os casos, como, por exemplo, no de passagens promocionais. “O passageiro deve estar ciente de que as passagens mais baratas têm restrições, e [ao optar por elas] ele assume os riscos de eventuais circunstâncias que o impossibilitem de comparecer ao embarque”, afirma Danielle. Com tal visão, a agência aprova as práticas das companhias aéreas, pois é exatamente isso que elas têm feito atualmente.
Essa “exceção” para passagens promocionais também é prevista na Portaria no 676/ GC-5, e dá brecha para as empresas cobrarem quanto quiserem por esse tipo de bilhete. “O que se vê é uma profusão de passagens promocionais: tudo virou promoção, com exceção da tarifa mais cara”, destaca Siqueira. E assim as empresas acabam não seguindo nem o limite de 5% estabelecido pelo Código Civil nem o de 10% pela Anac. “Uma vez que for estabelecido um teto para as taxas, há possibilidade de as empresas aéreas elevarem os valores das passagens para compensar as perdas da receita de multas”, argumenta a representante da agência.
Diante da conivência da Anac, fica a pergunta: o que o consumidor pode fazer? “Ele deve pagar a taxa, mesmo que seja abusiva. Porém, deve denunciar a prática ao Procon e pleitear o seu ressarcimento na Justiça”, orienta Siqueira. Segundo o advogado, o passageiro pode cobrar por via judicial a devolução do que lhe foi cobrado a mais nos últimos cinco anos. Para isso, é importante guardar todos os comprovantes de compra.
Além do Código Civil, uma decisão da Justiça Federal reforça a obrigatoriedade de as empresas aéreas respeitarem o limite de 5% do valor da passagem para as taxas de cancelamento. A sentença, em vigor desde agosto do ano passado e válida para todo o país, foi obtida através de uma ação civil pública do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) contra as empresas Tam, Cruiser, Gol, TAF e Total, e também contra a Anac. Segundo a decisão, as empresas devem cobrar no máximo 5% de multa se a desistência ocorrer com pelo menos 15 dias de antecedência da data do embarque; e de até 10% caso seja depois desse prazo. As empresas recorreram da decisão, mas enquanto o recurso não for julgado ela é válida. Contudo, as companhias aéreas também ignoram essa determinação judicial, como denuncia o próprio MPF-PA.
O Idec questionou a Anac sobre a fiscalização do cumprimento da decisão judicial, mas a agência disse que não recebeu intimação referente ao assunto.